17.7.06

Publico abaixo a transcrição da fala do Silvio Tendler no debate sobre o filme "Memória e História em Utopia e Barbárie", dia 29/06 na UFF:


(Silvio Tendler à esquerda + equipe da UFF e da Caliban;
não sei por que eu tô meio torta - ???)

Silvio Tendler - "É sempre bom discutir esse tipo de filme com mais jovens que não viveram essa época, que não tiveram essa vivência, até pra perceber até que ponto esse filme comunicou, que interesses ele gera para uma outra geração que não viveu esses problemas, que tem conhecimento, mas não viveu intimamente. Começando a falar da importância dele pra mim, eu fico imprensado nesse filme entre duas paixões, que é o cinema e que é a história. Eu sempre que quis fazer cinema. Eu comecei, como todo garoto de 15, 16 anos, nos anos 60, 65, 66, impressionado pelo cinema que o Godard fazia, que o Glauber fazia. E o sonho de todo mundo era fazer ficção. Éramos muito influenciados pela Nouvelle Vague, pelo Cinema Novo. Um dia, pegando um panfleto da Cinemateca do MAM, eu descobri um texto sobre o cineasta holandês Joris Ivens que contava a história dele. Ele fazia sempre um cinema político, ele fazia um cinema documentário fazendo duas coisas muito loucas pra mim naquele momento que era documentário e era político. E eu percebi naquele panfleto que era exatamente aquilo o que eu queria fazer. Nós já estávamos no ano de 1968, que foi aquele ano muito louco que mudou a história completamente da minha geração. E eu peguei aquele panfleto e disse: - “mas esse cara faz o cinema que eu queria fazer”. Eu queria fazer cinema e queria de alguma maneira interferir na vida, interferir na política, - por que não modestamente dizer? - interferir no destino da humanidade. E era o que o Joris Ivens fazia. Ele filmou, durante os anos 30, a Guerra Civil Espanhola. E ele fazia esse filme com um sentido militante. Ele foi pra Espanha com o Orson Welles filmar a Guerra Civil Espanhola. Passou esse filme nos Estados Unidos, pra ajudar a formar uma consciência da importância da luta democrática na Espanha. Com o dinheiro do filme, eles conseguiram comprar ambulâncias e mandaram pra Espanha republicana. Esse filme animou as brigadas internacionais, os Estados Unidos mandaram... os jovens americanos foram combater na Espanha pela Espanha republicana, nas brigadas Abraão Lincoln. Esse filme passou na Casa Branca e o Roosevelt falou: - “pô, mas é todo um povo que se bate e nós precisamos apoiar”. Então, eu percebi que havia um tipo de cinema político que era importante ser produzido para ajudar a interferir no curso da política. E era um cinema que tinha uma importância muito grande, porque não era um cinema produzido pelo Estado, pelos Governos. A gente já conhecia também algum tipo de cinema militante, mas produzido seja pelo regime socialista da União Soviética - que produziu os filmes do Eisenstein, que fazia aqueles filmes maravilhosos, mas eram filmes de produção estatal -, ou os filmes dos outros regimes totalitários - o cinema nazista, o cinema fascista -, que sempre utilizaram o cinema como uma arma de propaganda. O Joris Ivens é um cara que sempre fez um cinema militante no ocidente. Então, eu percebi que aquilo ali seria importante como um exemplo a seguir. E eu botei na minha cabeça, com dezoito anos de idade, que era aquele tipo de cinema que eu queria fazer. Em 1969, eu tive um problema político aqui no Brasil. Em 1970, eu fui morar no Chile. Morei até 72. E já na cabeça querendo fazer cinema documentário e cinema político. Quando eu cheguei na França - eu fui morar na França em 72 -, a primeira coisa que eu quis foi conhecer o Joris Ivens e consegui. Eu era um garoto de 22 anos e ele já era um senhor de 74. Ele era nascido em 1898, dois anos antes do século. E ele, com 74 anos, teve toda a paciência de receber um garoto de 22 anos, que chegava cheio de sonhos, idéias e também pretensões (a gente sabia tudo naquela época, a gente ia mudar o mundo mesmo). E o Joris Ivens me recebeu com o maior carinho, praticamente me adotou. Eu fiz a minha licença de história – porque eu não sou formado em cinema, eu sou formado em história -, fiz minha licença de história, depois eu fiz uma pós-graduação de cinema e história, e como tese de dissertação eu peguei a relação entre cinema e história vista através da obra do Joris Ivens. E ele me abriu todo o arquivo dele, acervo, fotografias, cartas. Então, eu tive um vasto material pra pesquisar e pra me municiar pro cinema que eu queria fazer. E eu voltei pro Brasil com essa perspectiva. Então, eu vim fazendo, ao longo desses anos, filmes políticos, filmes históricos, eu não consigo diferenciar muito. Ao trabalhar com a história contemporânea, eu não consigo tentar ter uma isenção científica. Pra mim, cinema é paixão, vida é paixão. Então, os filmes que eu faço são filmes apaixonados por coisas que eu acredito. Aí eu fiz o “JK”, fiz o “Jango”, vim fazendo filmes políticos esses anos todos. Depois fiz o “Castro Alves”, fiz o “Marighela”, estou terminando um filme agora sobre o geógrafo Milton Santos. E um grande nó na minha vida era essa questão de eu não me expor muito nos meus filmes, não colocar as minhas paixões pra fora, quer dizer, eu fazia o cinema como se o cinema pudesse ser uma coisa objetiva, e cada dia eu descubro mais que ele é subjetivo. E esse filme que vocês assistiram hoje na verdade é um rascunho de um grande filme que eu comecei a fazer em 91, 92, quer dizer, já se vão aí quatorze anos, que é um filme chamado “Utopia e Barbárie”, que na verdade é a história da minha geração, que é ter dezoito anos em 1968. O nó desse filme é isso, é pegar a história da minha geração. É um filme que vai do final da Segunda Guerra Mundial até a queda das torres gêmeas em Manhattan, em 2001. Pra mim, o século muda ali, acaba o século, acaba com a queda das torres gêmeas. Então, eu estou trabalhando esse filme já há quatorze anos, e esse filme aí, “Memória e História em Utopia e Barbárie”, é um rascunho dessa trajetória. Eu coloquei nessa versão pública de 50 minutos todas as minhas angústias, todas as minhas preocupações, todos os temas que eu quero abordar mais profundamente no longa-metragem. Mas eu queria de alguma maneira digerir esses temas e colocar eles na tela pra começar a discutir essas questões. Então, na verdade, ele revela essas grandes paixões que me motivam. Eu abro discutindo a questão da memória, a questão da história, e vou colocando, desenvolvendo ao longo do filme os fragmentos dessa memória que me motivaram, as lutas políticas, a ação cultural. Eu também me coloquei muito como... na minha vida, nessa vida de militância, essa coisa ambivalente que tinha o jovem em 68, quer dizer, as opções que a gente tinha era ou a luta armada ou nada. Quer dizer, a minha geração não acreditava muito na ação política, a minha geração acreditava que o único caminho possível de resistência à ditadura militar era a luta armada, e a luta armada, pra mim, significava, de uma certa maneira, ou a prisão ou a morte. Eu também não via muito a possibilidade da gente ganhar aquela parada aqui no Brasil. E eu me colocava muito essa questão: viver ou narrar? Quer dizer, eu me dizia que o intelectual não existe sem a ação revolucionária, agora a ação revolucionária também não existirá sem a memória. Então, que um necessita do outro. E eu, pela minha própria - de repente, até, a palavra é forte, mas, talvez, verdadeira - covardia, de ter a coragem de assumir o caminho da luta armada, eu me coloquei sempre com a vontade de fazer um cinema político que narrasse essa história, e é o que eu tento vir fazendo esse tempo todo. E esse filme, então, coloca esses dilemas. Eu coloquei justamente nesse filme todas essas questões. Eu coloco o velho e querido Apolônio de Carvalho, que é um exemplo, foi um exemplo pra nós todos e é um exemplo até hoje. Coloco o Ferreira Gullar, que é um enorme poeta que naquela época teve a lucidez de dizer: - “não é por aí; a luta armada não vai levar a nada; vamos fazer outro tipo de resistência; de arma na mão eles são mais fortes que nós”. E ele não falou isso no filme, ele falou isso na história, quer dizer, o filme apenas relata o sentimento do Ferreira Gullar. Coloquei o Apolônio. Coloquei o Faial, que era um jovem da minha geração, que era um ou dois anos mais jovem que eu, e que foi pra luta armada, foi companheiro do Marighella, foi banido do país. E fui cruzando isso com todos os outros tipos de ação que nasceram nesse momento, quer dizer, movimento Black Panthers, nos Estados Unidos, movimento feminista, cultura no Brasil, Boal, Zé Celso, e fui trabalhando todas as questões, todos os movimentos de vanguarda naquela época. E esse filme, pra concluir, é um grande rascunho desse filme maior que vai ser o “Utopia e Barbárie”, por isso esse aí se chama “Memória e História em Utopia e Barbárie”, porque eu relaciono os dois filmes lentamente."

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