30.12.06

Meu médico

Como pode me tocar com essa precisão científica?
Como pode com seus olhos me radiografar a alma?
Como pode num beijo me curar de todos os males?
Como pode ser remédio e droga que vicia?
Eu me interno no seu colo
Eu me trato com seu corpo
Colado ao meu
Nunca me volte olhos frios de laudo terminal
Nem me diga que eu vou ficar bem sem você
Gosto do jeito que me trata

De você, não quero receber alta

Meu laudo médico

Disseram-me que poetas são pessoas confusas e complicadas.
Se eu pudesse escolher, seria algo como um médico radiologista.
Eu veria o interior das pessoas sem precisar olhá-las nos olhos.
Daria um laudo sem precisar dirigir-lhes a fala.
E sumiria no labirinto de corredores frios e brancos sem deixar rastros de sangue ou de lágrimas pelo chão...
Eu seria simples e racional, como um gráfico, uma técnica, uma fórmula matemática.
Teria os olhos secos e frios de quem entrega a morte num envelope como cartão de natal.
Mas eu sou poeta, e tudo o que eu faço é quebrar a pele, rasgar o osso, trançar as veias, jorrar as vísceras pra fora quentes e vivas com todas as suas secreções de sangue e lágrimas manchando o chão, o teto, as paredes e todos os caminhos perdidos do teu labirinto enquanto eu vago a te procurar.

Este envelope que você traz nos olhos quando me olha, este envelope que você traz na boca quando me fala, este envelope contém a minha morte que você trás nas mãos quando me acena adeus.

28.12.06

A mais doce mensagem de Ano Novo!

Ninguém merece virar o ano de TPM! Minha retrospectiva 2006 é um fracasso de público e de crítica! As previsões pra 2007 são um tanto macabras! Enquanto todos comemoram eu só tenho vontade de não existir! Pra piorar a situação, meu namorado, agora ex, aceitou me perder porque era mais cômodo. E eu tenho certeza de que ele me aceitaria de volta de bom grado se eu caísse no colo dele como um presente de papai noel. Só que papai noel não vem me buscar no seu trenó e eu que não arredo mais o pé de onde estiver pra ir atrás de homem nenhum! No final das contas, são todos uns imbecis que não valem nada! Ou uns covardes! Ou uns acomodados! Porque eu iria para o Rio Grande do Sul feliz da vida encontrar um homem por quem me apaixonei... Mas pra que, não é mesmo, querido?! Pra que investir numa relação que não tem futuro?! Melhor anular logo o presente... Parece brincadeira o quanto eu tenho chorado por coisas tão insignificantes, enquanto neguinho morre queimado em ônibus no Rio de Janeiro... Eu choro porque enquanto incendeiam um ônibus, um jornal estampa "incendiam" na manchete e aquilo me dói tanto, tanto. Eu choro porque tem um imbecil que ganha dinheiro pra escrever merda, enquanto eu com toda a minha inteligência e arrogância tô na merda! Eu choro porque eu não consigo sair da inércia. Eu não consigo correr atrás de um bom emprego, eu não consigo sair da casa da minha mãe, eu não consigo sequer comprar um carro! Fodam-se os homens! Ninguém precisa de homem pra ser feliz! Mas precisa de um trabalho legal, dinheiro no bolso, casa própria e carrinho na garagem, ah, sim, disso precisa, sim! Ninguém é feliz dependendo dos outros. Nem financeiramente, nem emocionalmente. Aliás, ninguém é feliz e ponto final. Não dá pra ser feliz nesse mundo. Dá até pra se enganar em alguns momentos. Mas a realidade sempre dá um jeito de se impor. Se querem saber, eu não estou nem um pouco nesse clima "feliz 2007". Pra mim 2007 vai ser uma merda, talvez ainda pior que 2006. Eu vou fazer 26 anos me sentindo uma fracassada. Já velha e frustrada por tudo o que eu não fui. E eu não quero que ninguém me dê parabéns. Por favor, no meu aniversário, me dêem os pêsames. E quando eu morrer, bebam todas por mim!

24.12.06

Clima de natal, versão 2006

Chega o natal com seus transeuntes em transe consumidos pelo consumo. Papai Noel vem aos montes, nos shoppings, nas ruas, nas lojas, nas bancas. Gente e luz é que não pára de piscar em tudo quanto é lugar. Eu ando trenó sem rena, sem rumo, vagando a esmo. Eu ando nevando em sol de 40 graus. Aí vem o natal com seu pisca-pisca, eu apago. Mas o natal também tem suas surpresas escondidas no pé da árvore, guardadas no sapatinho, entrando pela chaminé, pulando a janela, arrombando a porta! Que venham natais aos montes, em todos os dias do ano, que venham mais natais, mil e um natais iguais, que venham mais, muitos mais, que venha sempre o natal que te traz!

19.12.06

Meu primeiro livro!


Não é um romance, não é de contos, nem de poesias. Meu primeiro livro é de reportagens! São várias reportagens realizadas em todos os cantos do país por diversos repórteres ligados ao coletivo Intervozes (link ao lado), tendo como elo as lutas pela democratização da comunicação no período da redemocratização do Brasil (década de 80). São as "Vozes da Democracia"! Eu assino duas reportagens com o meu amigo mais que querido Lucio Mello, que já recebeu o livro e disse que está uma lindeza! Eu ainda não recebi, mas outro grande amigo, Tonho Biondi, me disse que já deve estar pra chegar (Tô ansiosa, Tonho!). Aliás, o Tonho é uma figura fantástica sem a qual esse livro possivelmente não teria se tornado realidade. É o cara que corre atrás da paradas e realiza! Trabalha até demais, como um bom paulistano! Tanto que nem consegui encontrá-lo das últimas vezes que estive em São Paulo... O Lucio tá em Brasília... E eu aqui no Rio louca pra brindar com esses dois amores da minha vida! Louca pra brindar com o povo todo do Intervozes que eu não vejo faz um tempão! O que eu sinto é um misto de felicidade, memória e saudade... Um brinde ao livro e a todos vocês, meus queridos amigos!

Ps: Ontem teve lançamento em São Paulo e hoje terá em Brasília. O do Rio ainda não está marcado. Deve ficar pro ano que vem... Eu aviso aqui.


16.12.06

Chico! Chico! Sempre Chico!

Já dediquei muitos poemas para as minhas paixões, tenham elas durado um ano ou um dia. Mas há paixões que se eternizam. E desde que eu me entendo por gente, sou completamente apaixonada por Chico Buarque! Esta semana enfrentei uma fila absurda e paguei um preço absurdo por um ingresso para o show do Chico em janeiro no Canecão. Comprei na primeira mesa do setor B, na cara do palco! E se tudo correr bem, consigo entregar pro Chico o poema que dediquei a ele e que se segue:

Beatriz de Chico

Por que, meu deus, por quê?
nem mesmo por um triz
Chico nunca vai me cantar Beatriz,
nem olhar bem nos olhos meus,
mesmo que seu olhar seja de adeus...
Joga a pedra na Geni
e a Januária pela janela!
Cala a boca da Bárbara!
a Ana é de Amsterdam
a Joana, francesa - d’accord?!
Acorda!
a Rita levou seu sorriso
a Rosa, o seu projeto de vida
Iracema voou
Carolina não viu
Madalena lá do mar
te deixou a ver navios
Até a Renata Maria se desvaneceu!...
Ah, meu guri, quem te viu, quem te vê
deixa a banda passar...
deixa o barco correr...
Àtenas com as outras mulheres!
A Luíza fora do Tom
Eu, mesmo fora do tom,
te dei meus olhos pra tomares conta
agora canta
canta a sua atriz
me canta,
nem que seja num sambinha feliz...

(e eu te levo para sempre, sim,

te ensino a não andar com os pés no chão...)

15.12.06

Meus poetas ocultos

Quarta rolou a penúltima edição do ano do Ratos di Versos no Beco dos Ratos, Lapa, Rio, Brasil. A edição histórica, a mais aguardada do ano, a edição em que foram revelados os poetas ocultos! O poeta oculto é uma apropriação reconfigurada do tradicional amigo oculto pelos poetas: em vez de presente, poesia. Cada um escreveu um poema originalíssimo para o seu poeta oculto e recebeu um para si! Foi a roda de poesia mais emocionante da qual já participei! No que me cabe, confesso que fiquei com os olhos cheios d'água quando fui me vendo desenhar nos lindos versos do Gean, lidos com aquela doçura passional da Juju! Lindo! Amei! E também amei escrever para o Dalberto, que não é dos meus amigos mais próximos, mas uma figura que eu muito admiro e um poeta de boca cheia! Salve Dalberto! Salve Gean! Salve Juju! Salve Maristela! Salve Carluxo! Salve Dudu! Salve Daniel e Piti! Salve Nietzsche e Tiça! Salve Saulo! Salve também os que não estavam lá, Chacal, Maurição, Tavinho, Alex Topini e Cataldo! Salve todos os amigos poetas ocultos ou declarados!
E eis as minhas poesias:

de Bia Tavares para Dalberto Gomes

das entranhas rasgadas da terra
surge um suntuoso dragão
que cospe poemas de fogo
e raios de trovão
reina entre feras intrépidas
e entes mitológicos
suas temíveis presas
se soltam em largos sorrisos
pois que tão grande se fez
apenas para que lhe coubesse
um enorme coração
quando pés no chão
custa-lhe arrastar a pesada cauda
pela aspereza do mundo
mas a natureza sabe o que faz!
deu-lhe asas
e fogo nas ventas
fez-lhe poeta
entre poetas

de Gean Queiroz para Bia Tavares

Percorrer as ruas do mundo
De mãos dadas com todos os nossos heróis
Das letras e das telas
Ela faz cinema como quem pinta uma página em branco
Ela escreve versos como quem filma a alma das flores
Ela não esconde as dores
Ela não teme as ruas escuras
Seja na Avenida Dropsie
Ou nos becos sujos da Lapa
Ela cruza as longas pontes
Ignora as distâncias
Para nos brindar com vistas panorâmicas
De seus olhos verdes
Ela está à solta numa noite qualquer
Armada de visões macroscópicas de nosso tempo
Ela registra o vento
Ela edita os sentimentos
Abre sorrisos amplos de idéias
Que mundo é esse em que ela vive?
Garota esperta, afastou a nicotina de sua vida
Mas vive entorpecida de elogios
O mundo a rodeia embevecido
A liberdade sopra profecias em seus ouvidos
Enquanto as águias voam ao seu redor
Ela está plena de incompletudes
Carrega um vazio repleto de tudo
Ela faz cinema para eternizar o instante de suas incertezas
Ela não quer ficar pra sempre
Mas que seja enquanto esteja
Venha sempre com sua câmera de raio x das essências
Venha com seus poemas e seu olhar transparente
Venha com seu sorriso em transformação
Sua timidez
E sua admirável ousadia
Ela é do CEP
Ela é dos Ratos
Ela é dos Versos da Meia-Noite
Ela é Almodóvar
Ela vai pra Cannes
Ela escreverá um best-seller
Ela cruza a ponte
Ela vai longe
Muito além do horizonte
Ela atravessa a noite
Ela ilumina o dia
Perto de nós
Sempre
Simplesmente
Bia.

8.12.06

Tabacaria

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janelas do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubessem quem é, o que saberiam?),
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Com o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr umidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o Destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.
Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira de carruagens de um comboio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um rager de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou e achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua , como coisa real por fora,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram,
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos.
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Gênio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho gênios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicômios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu, que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansaradas do mundo
Não estão nesta hora gênios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -,
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades que Cristo,
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre só o que tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do Infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos das estrelas,
Conquistamos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordamos e ele é opaco,
Levantamo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar e a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos.
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, pra o decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocote célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei o quê moderno
- não concebo bem o quê -,
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vivos vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isto me pesa como uma condenação ao degredo,
E tudo isto é estrangeiro, como tudo.)
Vivi, estudei, amei, e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto, remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem não era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pregada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.
Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olhou-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu deixarei versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também, e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve a tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas,
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono de mistério da superfície,
Sempre isto ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?)
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me enérgico, convencido, humano,
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escrevê-los
E saboreio no cigarro a libertação de todos os pensamentos.
Sigo o fumo como uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma conseqüência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder, continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem saiu da Tabacaria (metendo troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o; é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta.)
Como por um instante divino o Esteves voltou-se e viu-me
Acenou-me adeus, gritei-lhe Adeus, ó Esteves!, e o universo
Reconstruiu-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

Fernando Pessoa