19.9.14
NÃO É SOBRE DESPEDIDAS
e então você me dá as costas
e eu te vejo caminhando
as mãos nos bolsos
os olhos acompanhando os buracos da calçada
a solidão pendurada nos seus ombros
se balançando pra lá e pra cá
te fazendo cambalear um pouco.
o dia vai clareando
e você sumindo no horizonte...
quer dizer, não, não há horizonte!
você some ao dobrar uma esquina
de repente
as luzes dos postes se apagam
o funcionário sobe a porta de ferro da padaria,
fazendo um enorme ruído rasgar o dia
e um bando de pombos revoar
para o outro lado da rua.
outro jeito de ir embora
é se distrair observando
a curvatura da cinza do cigarro que se queima longamente,
um rótulo de cerveja,
as unhas descascadas,
ou qualquer conversa desinteressante simulando um enorme interesse
enquanto tenta não pensar em nada.
é não olhar para trás,
e nem perceber a primeira cena.
ir embora é carregar silêncio nos pés e mordaças no peito,
e nós sabemos como ninguém estar sempre indo embora.
mas isso não é sobre despedidas.
é sobre encontros.
a gente se esbarra.
é que desde a primeira vez,
sempre foi o último beijo.
7.9.14
PROGRAMA DE GOVERNO PARA ALMAS DESGOVERNADAS
PROGRAMA DE GOVERNO PARA
ALMAS DESGOVERNADAS
ou PROGRAMA DESGOVERNO
para Presidente
Essa é
uma proposta da sociedade civil desorganizada,
representada
por mim que não represento ninguém.
MEDIDAS
PRELIMINARES
Tente
ficar uma semana sem olhar os relógios.
Perca
os horários, se atrase, esqueça os compromissos.
Deixe
alguém esperando, não vá.
Se a
pessoa estava lá, foi pelo relógio.
Livre-se
da culpa.
Agora
você já se preparou para o nosso programa de governo.
A vida
é sua. Governe-a.
Não
acate os meus comandos.
A
partir de agora, estou falando apenas comigo.
I. Ao
sair do apartamento, aperte todos os botões do elevador. Aproveite a viagem.
Observe como a porta abre e fecha, abre e fecha, como as luzes dos botões uma a
uma vão se apagando. Tente sentir o efeito da inércia no seu corpo quando o
elevador para em cada andar, se sobe ou se desce, se é brusco ou se é leve.
Pode ser que você sinta vontade de pular. Não se contenha. Pegue o interfone,
ligue para o porteiro e deseje-lhe bom dia. Se rolar assunto, converse. Observe
minuciosamente seu rosto no espelho, tente encontrar um cravo ou espinha;
esprema. Se não tiver, busque um fio de cabelo branco e arranque. Se não achar,
faça caretas. Quando menos se espera, no auge do divertimento, o elevador
chegará ao seu destino. Se lhe agradar, refaça a viagem. Mas é recomendável
sair para não se entediar. [Tema: Transporte]
II. Ao
alcançar a rua, libere a maconha. Seja generoso, e ofereça um tapinha a cada
transeunte que cruzar seu caminho. Alguns podem estranhar, e ter reações
adversas a você. Há sempre um tempo de adaptação quando se altera a legislação
do cotidiano. Haja o que houver, aja com
muita naturalidade, e siga caminhando. Se der vontade de entrar num parque pra
curtir a onda, aproveite para tomar um banho de chafariz. Libere-se das roupas.
Pise a grama sem sapatos. Corra entre as árvores. Se tiver um parquinho,
aproveite o balanço, a gangorra, tudo o que tem direito. Depois, convença o
pipoqueiro a lhe dar um punhado de pipocas. Vá até a carrocinha de churros e
peça um pouco de doce de leite por cima. Os trabalhadores das carrocinhas de
comidas dos parques e praças costumam ser simpáticos e generosos. Se não forem,
ofereça-lhes alguma coisa de presente, por exemplo, uma caneta, um isqueiro, um
óculos, um bloquinho de notas, ou qualquer coisa que carregue consigo e não
seja dinheiro. De todo modo, arrume algo de comer para seguir adiante. Se for
preciso, encontre uma feira e prove todas as frutas. A larica é impiedosa e
você precisa se satisfazer. [Tema: Liberação das drogas]
III. Tente
encontrar um orelhão. Um orelhão que funcione. Mas não se desespere. Aproveite
o passeio entre um orelhão e outro, contemple a paisagem. Se só tiver barulho e
fumaça, carro e gente, muito carro e muita gente, contemple ainda mais
calmamente. Tente distinguir no meio de todos os barulhos juntos cada barulho
singular que compõe essa orquestra. Observe as expressões de cada pessoa e
tente imaginar no que ela pode estar pensando. Pense nela por algum tempo,
faça-a existir para você. Para chamá-la de algum modo na sua memória, invente
um nome. Pode ser, por exemplo, algo que ela esteja usando. Aquela mulher ali
se chama Bolsa Vermelha, o homem do outro lado, Gel no Cabelo, e por aí vai.
Atravesse a rua fora da faixa, contornando em ziguezague o emaranhado de
carros, e não se esqueça de cumprimentar cada motorista com um leve aceno de
cabeça e um sorriso cordial. Quando enfim encontrar um orelhão - um orelhão que
funcione -, ligue para um número que se lembrar de cor - a sua mãe, um velho
amigo, o mecânico, o salão de beleza, a secretaria da faculdade, qualquer um.
Se não tiver cartão (ninguém mais tem cartão de orelhão), ligue a cobrar. Diga
que precisa conversar um pouco, e converse um pouco. Não importa o assunto. Mas
não minta, não invente desculpas (não há culpa). Ao deligar, dirija-se à pessoa
mais próxima e peça a sua opinião no assunto. Se for preciso, caminhe com ela
alguns passos, e ouça atentamente tudo o que ela tem a lhe dizer, mesmo que
seja só um “Vá se foder”. Considere a sua opinião. Se julgar justa, vá foder
(talvez seja preciso recorrer novamente ao orelhão, e ligar imediatamente para
alguém que possa fazer isso com você). [Tema: Comunicação]
IV. Pegue
o ônibus mais próximo. Pule a roleta (a tarifa zero já está contemplada no
debate sobre os elevadores, e consideramos válida para todos os meios de
transporte). Quando sentir vontade, dê o sinal e desça. Pegue outro ônibus
qualquer. Passeie um pouco. Dê o sinal e desça. Pegue outro. Faça perguntas aos
outros passageiros sobre os lugares por onde passam. Indague de onde vêm, para
onde vão, o que fazem. Tente conhecer o modo de vida de cada pessoa, do que
gostam, o que comem, seus hábitos e costumes, sua cultura, enfim. Peça para ela
cantarolar um trecho da sua música preferida. Quando algo da janela lhe chamar
a atenção, aponte. Fale um pouco sobre isso. Conheça a opinião do seu parceiro
de viagem. Observe cada rua, mesmo que já a conheça, como se pela primeira vez.
Estranhe o mínimo detalhe. Questione o significado daquela inscrição no muro –
você está numa antiga caverna. Aos poucos, após uns tantos ônibus e outros
tantos passageiros, você vai perceber que está conversando em outro idioma.
Você já aprendeu a língua. Desça onde estiver. Caminhe um pouco a pé. Já sente
saudades de casa? [Tema: Turismo]
V. No
local de trabalho, algumas recomendações são necessárias. Por exemplo, deixe
para amanhã o que você pode fazer hoje. É preciso se concentrar, e conter o
impulso de agir. É preciso não pensar nisso. Não pense no amanhã, e
concentre-se no aqui e agora. O que você tem pra fazer? Não faça. Se a angústia
de não fazer nada se apossar de você, faça algo que não seja da sua alçada. Se
você é secretária e deve redigir um memorando, e há uma servente encarregada da
limpeza, convença-a a escrever o memorando e varra com muito afinco o chão da
sala. Ela pode objetar que não sabe escrever um memorando. Você terá de
persuadi-la de que todo mundo é capaz de escrever um memorando, se tiver
vontade, e de mais a mais, ela já está de saco cheio de varrer, e que encare então
como um momento de descanso, não precisa levar tão a sério, etc. Certamente ela
se esforçará, bem como você. Ao final, o chão da sala estará impecável e o
memorando irretocável. Mas se fosse amanhã, estaria melhor. Pense nas infinitas
possibilidades de fazer amanhã o que você deveria fazer hoje. Então agora se
concentre, e não faça mais nada. Quem inventou essa história de que “tempo é
dinheiro” se esqueceu de dizer que o seu tempo é dinheiro no bolso de alguém.
Não gaste seu tempo sendo produtivo. A não ser que produza algo para si mesmo
ou para alguém querido, ou para a humanidade inteira. Você pode levar para o
trabalho agulha e linha de crochê a fazer uma linda blusinha para usar na
primavera. Ou então, usar o telefone do escritório e discar números aleatórios,
propagandeando nosso programa de governo a quem atender. Talvez você seja
demitido. Mas se for criativo, dará um jeito de sobreviver. A criatividade é a
alma do negócio. [Tema: Emprego e renda]
VI. A
essa altura, você já deve estar cansado. Descanse. Se alimente bem e tire uma
soneca. [Tema: Saúde]
VII. Selecione
alguns livros para ler. Estire-se na cama. Pegue o primeiro, contemple a capa,
leia o título em voz alta, dê uma folheada, leia um parágrafo, se detenha em
uma frase, observe o sumário, veja o número de páginas, dê uma última folheada
rápida de trás pra frente com o auxílio do polegar; apoie sobre a mesinha de
cabeceira. Tome nas mãos o próximo livro, contemple mais demoradamente a capa,
e repita todo o processo pulando uma etapa, como talvez o sumário ou a leitura
de um parágrafo. No terceiro, pule duas etapas. Do último, apenas olhe
rapidamente a capa, e largue-o sobre a pilha com os demais. Não pegue nenhum
livro, não se apresse em começar a ler. É o livro que deve pegar você. Perceba
o lindo bloco de livros empilhados que você formou: livros de várias cores,
formatos, texturas, dispostos uns sobre os outros de forma irregular. Você está
em um museu, diante de um objeto de arte contemporânea. Sinta-se tocado pela
obra. Agora, acomode-se na cama e contemple a brancura do teto. Aos poucos, os
pensamentos vão se soltando, você não os controla. Deixe-se levar. O teto
branco para os olhos e o silêncio para os ouvidos são o passaporte para a sua
viagem. Memória e imaginação, história e ficção, considerações filosóficas e
criação artística, fluirá tudo junto sem saltos, e sem a preocupação de fazer
distinções. Nada mais posso falar, porque você já não me ouve. Não sei quanto
tempo vai se passar, 5 minutos ou 2 horas, a marcação do tempo não dá conta de
dizer essa duração. Alguma coisa vai te chamar. Pode ser um incômodo do corpo
querendo mudar de posição. Foi bom pra você? [Tema: Educação]
VIII. Olhe
pela janela. Um casal passeia pela rua de mãos dadas e parece muito feliz. Um
olhar cúmplice, um carinho nos cabelos. O casal caminha sem pressa. Para no
ponto de ônibus, e conversa sobre coisas banais. Talvez estejam decidindo o
cardápio do jantar, a lista de compras do supermercado, ou comentando um
acontecimento do dia sem muita relevância. Um casal como outro qualquer,
falando qualquer bobagem, só para estar junto. Enquanto o ônibus demora, o
casal se namora. Falam algo amável, se olham com carinho, e se beijam.
Permanecem abraçados por algum tempo em silêncio, aguardando. O que aguardam
não é apenas um ônibus. Há sonhos deitados nos olhos. O nome de um filho,
talvez. Uma viagem no fim de semana. A cabeça no ombro se ergue subitamente com
a chegada do ônibus. O casal desperta e volta a se falar, sobe os degraus,
avança para a roleta, se protege dos trancos que o motorista dá, se acomoda no
banco e segue em frente. Você é capaz de dizer se o casal é um homem e uma
mulher, dois homens, duas mulheres, transexuais, travestis? Você se pergunta o
sexo dos passarinhos quando eles namoram na sua janela? Deixe a janela aberta. [Tema:
Combate à homofobia]
IX. Torne-se
um colecionador de chaves. Vá a um antiquário e procure por chaves remotas.
Pegue sorrateiramente todas as chaves que encontrar e faça cópias. Crie chaves
novas para fechaduras inexistentes. Acumule pequenas chaves de gavetinhas,
chaves de portas de armários, suntuosas chaves de portões de ferro antigos,
chaves de cadeados de variados tamanhos, as chaves das portas, as chaves dos
carros. Vasculhe a sua casa e encontre chaves que você já não lembra o que
abre. Colecione possibilidades de abertura. Você deve abrir as portas dos
presídios, você deve abrir as portas dos hospícios, você deve abrir as portas
das escolas, você deve abrir as portas dos quartéis, abra a porta da sua casa, abra
todas as casas, abra as porteiras, não abra uma conta no banco. Você deve abrir
a mente, você pode abrir as pernas. Abra os olhos, abra as mãos. Você deve
abrir as fronteiras dos Estados. Você deve abrir uma roda e dançar. Não abra um
negócio. Abra passagem. [Ainda não inventaram um tema para as possibilidades de
abertura]
X. Ignore
a sirene.
meu carro se encosta ao meio-fio
sempre que ouve sirenes às suas costas
desvio sem pensar
- gesto automático
de quem foi
educado.
desaprender
demanda muito esforço
conter o impulso
e não girar o volante
- lembrar-me por que -
olhar no retrovisor e ver
identificar a viatura
cantarolar distraída
uma música qualquer
permanecer
[se possível, reduzir a velocidade]
para a polícia
eu não abro passagem.
[Tema:
Desmilitarização das polícias]
XI. É
noite. Você nem se deu conta. Está sentado num banco de praça. Havia passado a
tarde inteira envenenando com milhos transgênicos os pombos da cidade. Olha em
volta procurando pombos agonizantes, mas a praça está tomada de ratos, uns com
bico, outros com um cotoco de asa. As criaturas estranhas da noite surgem de
todos os lados. A metamorfose já começou, não adianta correr para casa. Você
tenta levantar o pé, mas ele está grudado ao chão, como a um ímã. Então você
impulsiona os pés para frente e começa a deslizar do banco, até seu corpo todo
alcançar o chão. Segue rastejando seu instinto de cruzar a praça. Das portas
dos prédios, dos estabelecimentos comerciais, jorram grandes sacos pretos de
plástico, formando montanhas, primeiro nas esquinas, depois alcançando de ponta
a ponta toda a calçada. Você rasteja com dificuldade, e percebe que o cerco
está se fechando. Os sacos, muito cheios e pesados, começam a pender dos montes
e rolar para dentro da praça. Você se volta para o outro lado. Os sacos avançam
como tentáculos, de todos os cantos. O ar torna-se irrespirável. Os ratos
festejam a chegada da primavera. Escalam as montanhas com guinchos de alegria.
Você não tem a mesma agilidade. Está digerindo um boi inteiro como uma sucuri.
Rasteja pesadamente. Os sacos pretos formam um plasma que escorre e vai te
engolindo aos poucos. Você ainda tenta gritar por socorro. De repente, percebe
que você pode estar envolvido num sonho, tudo não passa de um terrível
pesadelo. Concentre-se, e você vai acordar. Concentre-se mais um pouco, tente
abrir os olhos. Talvez você seja um ser rastejante soterrado por sacos de lixo.
Durma bem. Você pode sonhar que é um ser humano. [Tema: Meio Ambiente]
XII. É
assim mesmo, a comida já nasce na prateleira do mercado, querendo te devorar. Você
está na cidade. Você planta dinheiro para colher alimentos. O dinheiro é a sua
semente. Nada brota sem dinheiro. Enterre uma nota de 100 reais em algum
canteiro; regue todos os dias. Mastigue moedas de todos os tamanhos,
estraçalhando os dentes. Se alimente bem. Não dispense uma boa salada: tempere
notas de 10 e 20 com sal, azeite e vinagre. Cozinhe as de 5 em fogo brando. As
de 2 são mais difíceis de engolir, leve ao fogo baixo na panela de pressão por
30 minutos. Você pode gratinar as de 50 levando ao forno; fica uma delícia! Não
pense que a nossa culinária é pouco variada. No Brasil, os pratos típicos são
servidos em reais. Os grandes chefes franceses nos oferecem pratos em euro. Já
os fast foods americanos são preparados com dólares. Você pode variar o paladar
frequentando uma casa de câmbio. E há ainda uma variedade enorme de cartões de
crédito. Não se esqueça de regar diariamente aquela nota de 100. Corte o
dinheiro em bifes. Quem rasga dinheiro é maluco. Coma todo o dinheiro que tiver
no prato; evite o desperdício. Quanto mais dinheiro tiver, mais você deve
comer. Engula todas as notas, as moedas, os dentes, os cartões, a conta no
banco, a conta no banco da Suíça, as grandes propinas, os pequenos subornos, o
desvio de verbas, os lucros, os rendimentos das ações, de todos os
investimentos lícitos e ilícitos. Se sobreviver, regue a nota de 100. E bon appétit! [Tema: Alimentação]
XIII. Tire
o dia para ir à praia. Sinta a brisa no rosto, os raios solares aquecendo o
corpo. Estenda uma canga e estire-se na areia. Permaneça lá deitado a tarde
inteira. Não saia antes do pôr-do-sol. Ao chegar em casa... Bom, muito se fala
hoje em energia eólica e energia solar. O que não se pergunta é de onde tiram
energia o sol e o vento? Sinta a moleza bater no seu corpo. É isso mesmo. Você
esteve a tarde inteira sem fazer nada e está sem energias, exausto. Precisa se
recarregar com um bom banho e uma dormidinha. Você forneceu muita energia para
o mundo hoje. [Tema: Energia]
XIV. More
num tênis All Star. More em qualquer tênis. Num da marca Mike da vitrine do
camelô. Nas suas Havaianas. Em qualquer chinelo. More numa sapatilha, numa
sandalinha, num coturno. More dentro das suas botas. Nos seus saltos. Nos seus
baixos. More nos seus sapatos. E vá a qualquer lugar. Você pensou que precisava
de uma casa para habitar o mundo – ah, o hábito! – e por isso tantos sapatos.
Agora experimente dançar descalço. Você é um rei no seu palácio. Você mora nos
seus pés. [Tema: Moradia]
XV. Na
queda, o mercado fraturou um osso. Na alta, saiu do hospital. O mercado tem
sempre um atendimento muito rápido e eficiente. Com a saúde financeira, não se
brinca. Para evitar doenças, tem-se uma vacina: injeta-se dinheiro aqui e ali.
Enquanto você morre a cada dia, o mercado sobrevive, com hospitais de alta
tecnologia e um psiquiatra exclusivo para tratar de suas crises. Nós não temos
nada disso, e por isso somos loucos. Rasgamos dinheiro. Mas não rasgamos apenas
o nosso dinheiro, ou haveria um déficit na balança comercial. Rasgamos também o
dinheiro alheio. Todo o dinheiro do mundo deve ser rasgado igual, para manter o
equilíbrio econômico. Na fase avançada do descapital, haverá apenas um tipo de
banco: o banco de praça, onde a gente vai se sentar, relembrar os velhos
tempos, e dar muita risada. Como éramos loucos de nos rasgar por dinheiro! [Tema:
Economia]
XVI. Arrume
tintas. Tinas de todas as cores. Pinte as paredes, os móveis, os objetos. Pinte
os muros, as calçadas. Pinte as roupas, os sapatos, os automóveis, os
eletrodomésticos. Pinte os braços, as pernas, os dedinhos, as bochechas, os
cotovelos, as orelhas. Pinte cada coisa de uma cor, vermelho, amarelo, branco,
preto, verde, azul, rosa choque. Misture as tintas, invente cores, receba as
cores dos outros e integre nas suas pinturas. Descubra cores novas e fique
maravilhado. Admire todas as cores. Deslumbre-se com a variedade de tons de que
é feito o mundo. Azul claro, escuro, turquesa, celeste, bebê, azul Yves Klein.
Seja aquela performer nua imprimindo a tinta do corpo na tela. Seu corpo é uma
obra de arte. Toda cor é bela. [Tema: Combate ao racismo]
XVII. Você
tinha medo do escuro e por isso aprendeu a dormir com as luzes acesas. Você
percebeu que dormir era uma forma de apagar as luzes, e por isso tantas
insônias. Você tinha medo de cair, mas não evitou as alturas. Já se acostumou
com as quedas e as fraturas expostas. Você tinha medo daquele palhaço de
brinquedo que ganhou de presente e lembrava uma cena de Poltergeist. Não podia
simplesmente livrar-se dele, para não perdê-lo de vista e ser surpreendida com
a sua visita, então o manteve trancado durante toda a infância dentro do
armário. Você ainda tem medo de filmes de terror, e não sabe mais do paradeiro
daquele palhaço. Tem medo de sofrer um acidente de carro, tem medo de que um
avião caia na sua cabeça sempre que ele voa baixo, e sempre tem medo de que um
caminhão tombe em cima de você com toda a sua carga. Você tem medo de raios e
trovoadas, embora goste muito da chuva. E tem muito medo de levar choque, de
chuveiros elétricos, e de tomadas, e de trocar lâmpadas. Tem um medo irracional
de baratas, e de encontrar minhoquinhas entre as folhas de alface ou dentro da
goiaba. Você sempre se assusta ao lavar verduras. Todo susto é o palhaço que
ressurge do nada. A cena do chuveiro. Um roteiro de Hitchcock. Você sempre
corre perigo. Não pode mais trancar seus medos dentro do armário. Você
colecionou muitos medos e eles já não cabem no cofre. Você tem medo do escuro e
tem medo de trocar lâmpadas. Você não pode viver só. Todo mundo precisa de colo
quando acorda de um pesadelo. Todo mundo tem seus medos. Vem cá, criança. Deixe
que lhe façam cafuné nos cabelos. A lei de todo filme de terror: só é pego quem
se separa do grupo. Se estamos juntos, o palhaço não pode nos alcançar. [Tema:
Segurança]
XVIII. Às
vezes é bom sair da cidade, sentir o cheiro de terra molhada, descobrir de onde
vem a batata. Até esbarrar nos arames farpados. No campo, nem tudo são flores.
Um dia, inventaram fronteiras e propriedades. Aí hoje alguém diz “Vá plantar
batatas!”, e você não pode. Não tem terra. É preciso cavar a terra com as
próprias mãos e arrebentar os arames farpados com os dentes. Não há flores no
campo. As gengivas sangram. Vá plantar batatas. E faça nascerem as flores do campo.
[Tema: Reforma agrária]
XIX. Eu
sou mulher.
[Tema: Combate
ao machismo]
XX. Tente
ficar uma semana sem olhar os relógios. Ao sair do apartamento, aperte todos os
botões do elevador. Ao alcançar a rua, libere a maconha. Tente encontrar um
orelhão. Pegue o ônibus mais próximo. No local de trabalho, algumas
recomendações são necessárias. A essa altura, você já deve estar cansado. Selecione
alguns livros para ler. Olhe pela janela. Torne-se um colecionador de chaves. Ignore
a sirene. É noite. É assim mesmo. Tire o dia para ir à praia. More num tênis
All Star. Na queda. Arrume tintas. Você tinha medo. Às vezes é bom sair da
cidade. Eu sou. Viver é uma arte. [Tema: Cultura e Arte]
CONSIDERAÇÕES
FINAIS
Você
nunca tem tempo.
É o
tempo que tem você.
Você
pensa que possui as coisas que você tem,
mas é
você a propriedade das coisas.
As
coisas são seu patrão.
A
subtração do seu corpo,
o
sequestro do seu tempo.
Você
não precisa de nada,
você
precisa de precisar,
e
precisa sempre mais de mais.
Nunca
estará satisfeito.
A menos
que faça o relógio
girar
no sentido anti-horário,
e seja
seu próprio proprietário.
Eu
arriscaria.
“A vida
é sua. Governe-a”.
LANÇAMENTO DIA 5 DE OUTUBRO:
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