31.1.06

DURANTE O MÊS DE FEVEREIRO ESTAREI OFF LINE
PARA DAR START NA MINHA MONOGRAFIA
E ENTER NA MINHA FORMATURA

Sem redenção

Eu já fui a cartomante,
curandeira, macumbeira
Já fiz tudo que é promessa
pra santo e padroeira
Busquei norte no oriente
Decorei o kama sutra
Já dancei dança do ventre
Já andei até de burca
Já cantei tudo que é mantra
Meditei, tentei o tantra
Indaguei i-ching:
não respondeu
Apertei do-in
e mais doeu
Dei a volta ao mundo
Tentei de tudo
e nada
Ao sul do ocidente
resto
ainda mais descrente
Porque você, meu único redentor,
é de concreto,
e mente com seus braços abertos

29.1.06

elas por ELAS

Desejaria com todas as minhas forças tornar-me lésbica; meu coração é das mulheres, das grandes mulheres, autênticas, com a suavidade de sua força e a leveza de sua alma densa. Mas meu corpo só estremece ao toque de mãos masculinas. Por isso, talvez, essa minha paixão por homens com aquela sensibilidade rara. Por isso, estremeço de corpo e alma à voz de Chico Buarque em suas canções "femininas". E vibro com cada artista que consegue expressar com magnitude o universo feminino em sua obra, um universo repleto de fases lunares, estrelas cadentes, cometas, buracos negros, oscilações gravitacionais e big bangs! Por isso, entre minhas obras prediletas estão autoras como Clarice Lispector, Simone de Beauvoir, Lya Luft, Florbela Espanca... e me hipnotizo com as presenças de palco de artistas como Denise Stoklos, Viviane Mosé, Maria Rita, Elba Ramalho, Maria Betânia... (cito só algumas, pra não me estender em listas). Cada vez mais quero ler mulheres, ver mulheres, ouvir mulheres, falar mulheres... Mulheres que protagonizem suas próprias obras, e não que se resignem a servir de musas para a inspiração masculina. Dito isto, encerro aqui meus arroubos feministas. Até o próximo big bang!

28.1.06

Guiguis versus Genis

Nem toda Geni é puta; nem toda Guigui, boneca. Mas entre uma e outra, escolho a primeira. Guigui é pré-fabricada, tem molde certinho, produto de massa, tudo de borracha. Geni se esborracha, se entrega pra massa, não é nenhum modelo, o mundo a fabrica. Mas é humana pra caralho!
Por isso, faço aqui minha homenagem a todas as Genis, seja a de Chico, a de Nelson ou a Geni que vive dentro da cada mulher de carne-osso-aura-e-alma.

Darlene Glória como a Geni do filme "Toda nudez será castigada",
adaptado e dirigido por Arnaldo Jabor


Geni e o Zepelim
(Chico Buarque)

De tudo que é nego torto
Do mangue e do cais do porto
Ela já foi namorada
O seu corpo é dos errantes
Dos cegos, dos retirantes
É de quem não tem mais nada
Dá-se assim desde menina
Na garagem, na cantina
Atrás do tanque, no mato
É a rainha dos detentos
Das loucas, dos lazarentos
Dos moleques do internato
E também vai amiúde
Com os velhinhos sem saúde
E as viúvas sem porvir
Ela é um poço de bondade
E é por isso que a cidade
Vive sempre a repetir

Joga pedra na Geni
Joga pedra na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Um dia surgiu, brilhante
Entre as nuvens, flutuante
Um enorme zepelim
Pairou sobre os edifícios
Abriu dois mil orifícios
Com dois mil canhões assim
A cidade apavorada
Se quedou paralisada
Pronta pra virar geléia
Mas do zepelim gigante
Desceu o seu comandante
Dizendo - Mudei de idéia
- Quando vi nesta cidade
- Tanto horror e iniqüidade
- Resolvi tudo explodir
- Mas posso evitar o drama
- Se aquela formosa dama
- Esta noite me servir

Essa dama era Geni
Mas não pode ser Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Mas de fato, logo ela
Tão coitada e tão singela
Cativara o forasteiro
O guerreiro tão vistoso
Tão temido e poderoso
Era dela, prisioneiro
Acontece que a donzela
- e isso era segredo dela
Também tinha seus caprichos
E a deitar com homem tão nobre
Tão cheirando a brilho e a cobre
Preferia amar com os bichos
Ao ouvir tal heresia
A cidade em romaria
Foi beijar a sua mão
O prefeito de joelhos
O bispo de olhos vermelhos
E o banqueiro com um milhão

Vai com ele, vai Geni
Vai com ele, vai Geni
Você pode nos salvar
Você vai nos redimir
Você dá pra qualquer um
Bendita Geni

Foram tantos os pedidos
Tão sinceros, tão sentidos
Que ela dominou seu asco
Nessa noite lancinante
Entregou-se a tal amante
Como quem dá-se ao carrasco
Ele fez tanta sujeira
Lambuzou-se a noite inteira
Até ficar saciado
E nem bem amanhecia
Partiu numa nuvem fria
Com seu zepelim prateado
Num suspiro aliviado
Ela se virou de lado
E tentou até sorrir
Mas logo raiou o dia
E a cidade em cantoria
Não deixou ela dormir


Joga pedra na Geni
Joga bosta na Geni
Ela é feita pra apanhar
Ela é boa de cuspir
Ela dá pra qualquer um
Maldita Geni

Patrícia Selonk como a Geni da peça "Toda nudez será castigada",
dirigida por Paulo de Moraes (Armazém Cia. de Teatro)

Trechos de Toda nudez será castigada
(Nelson Rodrigues)

GENI – Foi minha mãe, quando eu tinha 12 anos. Um dia minha mãe me mandou comprar não sei o quê. Nem me lembro. Eu me demorei. E quando cheguei, minha mãe gritou: - “Tu vai morrer de câncer no seio!” Minha própria mãe me disse isso. Você ainda se admira que eu tenha caído na zona? Toda mulher já foi menina. Eu, não. Eu posso dizer de boca cheia que nunca fui menina.

[...]

GENI – Eu não abandono homem que está por baixo! (Na ânsia de convencê-lo) Ninguém me conhece, mas eu me conheço. Herculano, eu preciso ter pena. O meu amor é pena. Eu estou morrendo de pena. Juro, Herculano! Pena de ti e do teu filho!

27.1.06

Pagu

Rita Lee e Zélia Duncan

Mexo, remexo na inquisição
Só quem já morreu na fogueira sabe o que é ser carvão
Eu sou pau pra toda obra
Deus dá asas à minha cobra
Minha força não é bruta
Não sou freira nem seu puta

Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem

Sou rainha do meu tanque
Sou Pagu indignada no palanque
Fama de porra-louca, tudo bem
Minha mãe é Maria-Ninguém
Não sou atriz-modelo-dançarina
Meu buraco é mais em cima

Porque nem toda feiticeira é corcunda
Nem toda brasileira é bunda
Meu peito não é de silicone
Sou mais macho que muito homem

26.1.06

Estranha preferência

A todas as mulheres autênticas,
em especial Aninha Tavares, Dani Almeida e Marcela Giannini


Às vezes eu acho que tudo o que um homem quer é encontrar uma mulher autêntica. Mas eles sempre acabam ficando com as padronizadas. Sorriso padronizado. Jeito de ajeitar o cabelo padronizado. Comentários padronizados. Corpo padronizado. Roupas padronizadas. Até o sexo deve ser padronizado. E burocrático! Eles fogem das autênticas. Os mais inteligentes acabam se aproximando das autênticas e até rolam uns affaires, mas elas sempre acabam se tornando ótimas amigas, daquelas de bater no ombro, de falar merda às gargalhadas e fechar o boteco com a cara cheia de cachaça e o garçom jogando água na calçada pra expulsar os bêbados derradeiros... Um belo dia, o amigo inteligente da amiga autêntica aparece com uma nova namorada padronizada e começa a se afastar, “hoje não vou pro bar”, “hoje é um mês de namoro”, “hoje é dia dos namorados”, “vou conhecer a mãe padronizada da namorada padronizada” e por aí vai. Até que um dia o amigo inteligente dispensa a sessão daquela mostra especial do Estação ou do Cachaça Cinema Clube no Odeon pra ver um enlatado hollywoodiano meloso com a namorada sorridente, e deixa de ser considerado inteligente pela amiga autêntica. Aí já é demais! As amigas autênticas costumam se reunir em botecos autênticos para tomar cerveja e falar de várias coisas, afinal, como são inteligentes, têm muitos assuntos para conversar. Mas sempre acabam falando também dessa estranha preferência dos homens, mesmo dos inteligentes, por meninas padronizadas. Assim formulou-se um novo conceito, baseado numa boneca que sempre dava um sorrisinho, sempre o mesmo, enjoado e chato, e nada mais. Guigui era seu nome. Mas por que os homens preferem as Guiguis? Talvez para se sentirem superiores, para se sentirem mais inteligentes e mais autênticos. Afinal, com a ascensão das mulheres no mundo do trabalho, com a liberação sexual etc e tal, as mulheres tornaram-se uma ameaça. Mas eles não podem viver sem as mulheres. Então, procuram as mais sem sal, aquelas que chamam menos atenção, que têm menos opinião própria etc e tal. Enfim, as padronizadas. Mas talvez não fosse isso. Porque se eu acho que tudo o que um homem quer é encontrar uma mulher autêntica... Talvez eles tenham medo de lidar com a responsabilidade de ter exatamente aquilo que sempre quiseram. Como ter aquilo que se quer, num mundo em que somos sempre instigados a querer ter o que não queremos e a ser o que não somos, só pra consumir, consumir, consumir? Não, seria uma afronta ter o que se quer nesse mundo. Uma afronta a todos aqueles que ralam a vida inteira para ter tudo aquilo que nunca desejaram de verdade ter. Uma afronta a todos aqueles que... Uma afronta. Não, é melhor acreditar que o que se quer não é o que se quer e querer o que todo mundo acredita que quer. É mais confortante. Menos conflitante. É mais... Pode ser mais... Mas será que é possível ser feliz assim? Vejo alguns rostos a minha volta, olho para os casais padrão, eles parecem alegres. Mas será que estão felizes? Alegria e felicidade são duas coisas muito diferentes. Sei disso, porque nos momentos em que estou mais infeliz procuro extravasar o máximo de alegria possível. Uma alegria contagiante. Uma alegria, diria mesmo, sufocante. Uma superfície bem espessa de alegria para esconder o vazio que está por dentro. Por essa breve olhada para a superfície dos sorrisos padronizados e idiotas dos casais a minha volta, não posso dizer se são felizes. Mas sei que podem não ser. Sei disso por experiência própria. Aquele casal ali não pára de rir e se olhar um olhar meigo e apaixonado, de mãos dadas, sorridente, devem estar carentes, coitados! As pessoas costumam despejar toda a carência afetiva de uma vida inteira em seus “pares românticos”. É por isso que a maioria dos relacionamentos não tem futuro, e pior, não tem presente, é só uma sucessão de cotidianos acumulados acomodados entre um beijo e um berro. Todos os casais brigam. Mas todo mundo diz que isso é natural só porque todo mundo briga. Besteira! Não acho que uma coisa é natural só porque todo mundo faz. Aliás, quanto mais gente fazendo e gente copiando o que tem gente fazendo, mais isso deixa de ser natural e passa a ser um comportamento social. E tudo o que é construído socialmente, tudo o que é cultural, pode ser transformado. Aliás, até o que é natural pode ser transformado. Mas as pessoas dizem que não, que você tem que se conformar porque é natural. “A vida é assim!” Idiotas! Enquanto vivem a vida “assim”, não percebem que deixam de viver, que suas vidas vão sendo sugadas pouco a pouco até o dia de sua morte. É por isso que olham para trás e querem acreditar que tem alguma coisa esperando por elas lá na frente. Precisam de um Deus que salve suas almas, porque elas mesmas não se salvaram em vida. No final, vão ser comidas pelas minhoquinhas. A não ser as que têm dinheiro para virarem cinzas e serem jogadas em algum lugar qualquer pra serem carregadas pelo vento. Estas não serão comidas por minhocas, pelo menos. Mas que diferença isso faz, já estão mortas mesmo. Volto ao bar. Minhas amigas dão gargalhadas e eu perdi o fio da meada. Droga, vou dar uma de chata e pedir para repetir a piada. Mas aí já vai ter perdido a graça. “Garçom, traz mais uma, por favor”. A gente enche os copos e brinda às mulheres autênticas, que permanecem intrigadas com a estranha preferência dos homens, em especial daqueles que a princípio (pelos menos até o próximo filme enlatado meloso) julgamos inteligentes.

24.1.06

tava com sede de michel e fome de melamed.
michel melamed, regurgitofagiei-lo:

"porque as três marias + os sete mares são os dez mandamentos
e as 7 maravilhas do mundo menos os 3 porquinhos
são as 4 estações
ou os 4 cavaleiros do apocalipse ou os 4 mosqueteiros.
porque
os três patetas ou o tamba trio
+ os sete pecados capitais ou os 7 gatinhos capitus ou os sete anões,
dariam dez,
bateria nota 10! 10!
mas que menos a lua ou a vida,
dariam nove irmãos para nove irmãs
e que não passam dos 12 - trabalhos de hércules ou contos peregrinos
menos 1 four de ás menos dois perdidos numa noite suja...
porque os trezentos e sessenta e cinco dias do ano,
menos os jackson five
menos 3 vezes sem juros
menos 26 poetas hoje
os quarenta ladrões, a nona sinfonia e as 500 milhas de indianápolis
nos levariam
- mesmo que alterando a ordem dos fatores ou futuros -
a lutar
para que todo OBS tenha um W.C.
e não para que todo W.O. tenha um OK
mas para que todo QG tenha HQ
toda PM: PF
BG: THC
LSD: CBF
OB: RJ
FMI: PCB
MPB: SKI
COI: MST
CIC: BUT CUT: VIC BIC: UNE VIP: SOS

TODO ZAP: CEP
BUG: TPM GLS: IFP ONU: DNA PV: FDP
RAP: RAM IT: ALÁ CPC: VJ MST: NBA
TOP: TAB CAT: FAB PUC: SET ZEN: JET BEM: BIG POP: ONG DOG: CVV

todo GOL seja AÇO
todo BIP: BUM
todo FIM: PAZ
que todo PT tenha SAUDAÇÕES
e toda PROPAROXÍTONA: PARALELEPÍPEDO
e que todo INCONSTITUCIONALISSIMAMENTE
tenha
OTORRINOLARINGOLOGISTA"


Michel Melamed
("Regurgitofagia". Rio de Janeiro: Objetiva, 2005)

22.1.06

Dinheiro grátis

Queimar dinheiro não é pra qualquer um... Aquele festival de compra e venda ganha um sentido revolucionário ali. Pouco me importam os pormenores do texto e da direção, que a crítica teatral em geral adora escarafunchar. “Dinheiro grátis” dialoga com o espectador, provoca a crítica, o questionamento, a ação. Insere o espectador num jogo em que a aposta é dinheiro compra tudo. O espectador entra nesse jogo comprando, vendendo, especulando valores para isso ou aquilo. De repente, está naturalizada a afirmação: dinheiro compra tudo. Um cara do público simula uma masturbação por três reais! Uma fumante desesperada paga dois reais pra fumar um cigarro no palco (eu quase, quase paguei um... ela deu um lance mais alto)! Melamed vende uma declaração de amor sincera, um poema, uma música... E no final, queima o dinheiro todo! (todo não, que as moedas não queimam, mas vale o simbolismo). Eu saí da peça ainda sob efeito daquilo tudo, ainda estou sob efeito daquilo tudo, e isso pra mim é uma boa peça! Não uma pecinha padronizadinha, bem acabadinha, bonitinha e legalzinha que não te propõe reflexão alguma, que não mexe com você, que não dialoga, que não te diz nada! Não vi “Regurgitofagia” por puro preconceito: não gostei daquela coisa de choque elétrico, achei muito pós-moderna, tipo Eduardo Kac e sua idéia de um cachorro fluorescente. Hoje, me arrependo. Devia ter visto. Michel Melamed ganhou (mais) uma fã.

DINHEIRO GRÁTIS
Texto e atuação: Michel Melamed.
Direção: Alessandra Colasanti e Michel Melamed.
Espaço Sesc: Rua Domingos Ferreira, 160 - Copacabana – Tel. 2547-0156. Qui a sáb, às 21h. Dom, às 19h30. R$12. 70 minutos. Até 29 de janeiro.

21.1.06

9 anos de espera

Estava fumando um cigarro jogada no sofá da sala, quando me lembrei deste pequeno conto que escrevi em 97, aos 16 aninhos, e resolvi publicar. Foi mais ou menos nessa época (na verdade, um ano antes) que comecei a escrever.

A longa espera

Cida já fumava o último cigarro do maço que comprara pela manhã. Estava à espera do "príncipe encantado" (Dizia querer encontrar o homem ideal!). Sentada num desconfortável sofá de um apartamentinho no Flamengo (e já com o aluguel atrasado), esperava pacientemente. Poderia passar a vida inteira esperando, mas precisava comprar mais cigarros. Desceu os dois andares de escada e caminhou lentamente até o bar da esquina.
- Um maço de Free. – pediu.
Já com os cigarros em punho, foi caminhando, sem pressa, até a sua casa. Alguns homens que passavam na rua a olhavam (Ela era uma moça bonita, atraente. Tinha longos cabelos castanhos, olhos azuis e devia ter uns dezoito anos.), mas ela não dava bola, nem pelota. Só um homem a interessava. E esse ela iria esperar em casa. Talvez mais tarde ele chegasse, no seu sonho. Talvez não. De qualquer forma, era dele que ela gostava.
Muitos anos depois, estava Maria Aparecida sentada, no mesmo sofá desconfortável; e morta. Morrera esperando. O último cigarro caíra sobre o sofá, aceso. E o cigarro que a consumira por dentro durante todos esses anos, a consumia agora por completo. O fogo já se alastrava por todo o apartamento, acabando com tudo o que teria sido a sua vida. Inclusive as contas atrasadas.

18.1.06

Enquanto isso e por enquanto...

“Quem um dia irá dizer
que existe razão
nas coisas feitas pelo coração?
E quem irá dizer
que não existe razão?”
(Renato Russo)

“Meu coração não se cansa
de ter esperança
de um dia ser tudo o que quer”
(Caetano Veloso)


Enquanto Mônica tomava uma bala numa rave do outro lado da cidade
Eduardo, 16 anos, tomava uma bala na cabeça
num assalto a mão armada:
ele não quis se desfazer
do seu microcelular
que tudo faz e tudo vê.
À beira do abismo do caos de concretos
fatos falsos estampam manchetes coloridas
Sorria, você está sendo filmado calado comprado vendido
a inumeráveis prestações de juros estratosféricos
Sorria, ainda está vivo
seu corpo
no vai-e-vem absorto de cacos de corpos
mortos aos poucos
Entra em rede, se prende, se perde
– vai scrap no orkut!
Enquanto Ronie criava uma nova comunidade
racista, nazista, machista, sexista, tudoista e mais um pouco
Mais um louco estrebuchava eletrocutados neurônios
num manicômio em regime fechado
O bicho comia solto
em velhas comunidades de favelas
no fogo cruzado entre o crime organizado e o desorganizado

Tantas velas consumiam-se em novos caixões
Outras tantas procissões rogavam um Deus em salvação
Um deles disse não em seita suicida
Um outro deu receita: compre sua vida
após a morte
E todo o mundo foi entregue à própria sorte
ou azar
Alguém deu grito salve-se quem puder
é cada um por si e Deus por mais ninguém!
Uns contra todos e todos por nenhum!
Um outro viu além, não disse amém, bradou uni-vos!
Ninguém ouviu seus uivos.
Enquanto Laurinha comprava
uma roupa última moda
Madalena era estuprada
à moda antiga
Maria entoava mais uma cantiga de roda
O mundo girava a roda viva
A cidade corria, corria, corria
e na pressa ninguém se lembrou de viver
Teve também quem não achasse meios
e todos aqueles que se ofereceram aos arreios
Enquanto isso e muito mais,
e por enquanto em todo canto,
ainda ouço um uivo gemido tímido ecoar nos meus ouvidos:
uni-vos! uni-vos! uni-vos!

17.1.06

Planeta Letra

Ontem teve Planeta Letra no Planetário da Gávea. Toda segunda rola. Ontem, eu fui. Eu gostei e não gostei. O ambiente é agradável (embora barulhento), rola música e poesia (e umas maluquices performáticas); Chacal, Tavinho Paes, Daniel, Dudu, Maurição, Carluxo, e mais umas pessoas que eu não conheço mandaram boas letras. Eu, que tinha ido ao enterro de um tio à tarde e odeio ver gente morta, estava num clima meio mórbido, mas convocada por Dudu, acabei lançando minha morbidez ao microfone. Sim, eu gostei. Mas não acho que valha a longa travessia da baía e do asfalto, a bordo de um 996 congelante, em plena segunda-feira. Acho que pra quem mora ali pela Gávea e redondezas, é um bom programa pra noite de segunda. Pra mim, definitivamente, não é. Esse planeta é de uma outra galáxia. Eu canso, só de pensar em ir. Pode ser que eu vá ainda mais uma vez, pra Noite de Vênus talvez. Ou pode ser que eu me enterre em Niterói durante um bom tempo, pra ver se termino logo a faculdade e aí, quem sabe, arrumo um trabalho que preste no Rio e me mudo pra lá! Vamos ver, vamos ver... por ora, melhor me concentrar nos meus estudos.

14.1.06

Cordel: Democratização e o Jumento

Na minha estante, lado a lado de livros bem encapados de autores consagrados, encontram-se uns livrinhos de cordel em suas folhas frágeis de conteúdos contundentes. A literatura de cordel me agrada muito. Há um tempo, conheci um cordelista morador de Niterói que vendia seus livros pela UFF. Na época, eu coordenava o Diretório Acadêmico de Comunicação e iríamos a um Encontro Nacional de Estudantes debater a Democratização da Comunicação. Sugeri encomendarmos a ele um cordel sobre o tema, e o pessoal acatou. O pouco dinheiro que tínhamos foi bem investido, embora a distribuição tenha sido parca (incompetência nossa). Passei pra ele o tema geral e ele materializou o essencial na figura de um jumento! Não concordo com tudo que ele diz aí não, mas o principal tá lá, o jumento “alevantou”!
Na tela não é a mesma coisa, mas aí vai o cordel de João Batista Melo - um senhor muito simpático e sempre solícito quando o convidávamos a falar seus cordéis nos eventos que organizávamos no IACS, e que infelizmente faz um bom tempo que eu não encontro (espero que esteja bem):

DEMOCRATIZAÇÃO E O JUMENTO

Hoje vou denunciar
uma grande safadeza
que fazem com muitos povos
e no Brasil com certeza
tem um jeito descarado
pelo modo debochado
da nossa elite burguesa

Trago conceitos da roça
fazendo misturação
com modo dos animais
vida e comunicação
sua arte e seu talento
até do magro jumento
um cronista do sertão

E principalmente falo
da democratização
esse processo importante
pro povo duma Nação
para este tema tão sério
o governo sem critério
o deixa de mão em mão

Falar também do controle
dos meios de comunicar
hoje comunicação
tem força para educar
não deve ficar na mão
de quem só quer a Nação
para se locupletar

O homem surgiu da terra
sozinho e sem proteção
foi se juntando com outros
pela comunicação
definida identidade
formou-se a comunidade
e daí cada Nação

Todo Estado soberano
cuida do seu cidadão
dá saúde e segurança
bem estar e proteção
sem permitir que ninguém
venha interferir também
na forma de educação

Nosso governo entretanto
comete um erro brutal
ao permitir toda imprensa
na mão d’algum maioral
onde manipulam tudo
nos deixando surdo e mudo
e cegos no ideal

Pelo jeito que se vê
a onda neoliberal
quer tornar nosso País
um centro empresarial
onde o próprio Presidente
não passe de um gerente
da vontade patronal

Isso é dar para a raposa
a chave do galinheiro
é eleger criminoso
pra Juiz ou Carcereiro
é brabo estelionato
é entregar-se de fato
a Nação pro cativeiro

Assim é “mamar” demais
faz até perder o gosto
o Estado renunciar
as obrigações do posto
e pra ter mais capital
ficar “bonito” e legal
aumentar o nosso imposto

A dona Democracia
essa grega tão gostosa
que quanto mais o tempo passa
mais fica maravilhosa
nos quatro cantos da terra
por ela se vai à guerra
e ganha menção honrosa

Aqui no nosso País
ela parece utopia
fazem tanta enganação
que chega a ser covardia
sonhamos em conhecê-la
e daí poder fazê-la
nosso pão de cada dia

Nosso querido País
desde a sua descoberta
instalou-se no poder
uma casta muito esperta
não trabalha educação
pra vê se nosso povão
nunca na vida desperta

Brasil doente e carente
explorado e ofegante
injustiçado e drogado
boca cosida à barbante
discussões aqui nem cabem
quando dizem que não sabem
porque dormes o gigante

Boa educação nos trás
muitos olhos para ver
ouvidos para escutar
coração para entender
olfato para sentir
paladar pra definir
e tino para fazer

Os poderosos bem sabem
e muito mais do que nós
por isso ficam fazendo
essa política atroz
o homem bem educado
não deixa ser enganado
é gente com vez e voz

COMUNICAÇÃO é troca,
é aviso, é ligação
é caminho principal
na busca da formação
é componente vital
e algo fundamental
na vida do cidadão

Porém imprensa “marrom”
pode até fazer chover
quem não se lembra dos casos:
“Fernandos e Pinochet...”
mas imprensa democrata
não deixa nenhum primata
instalar-se no poder

Hoje temos um dilema
deveras de arrepiar:
“modernidade” não falta
mas nas mãos de quem está?
Vejam que cheiro de pus:
deixarem faltar a luz
para poder avisar!...

Falando direto ao povo
o Jesus de Nazaré
igual João no deserto
e no Dilúvio Noé
Maomé no seu Alcorão
e Buda em meditação
deram mensagem de fé

Mas se Esses não criassem
seus meios de comunicar
ficassem na dependência
para a mensagem passar
hoje a vida era sem prumo
igual um barco sem rumo
inda pior do que está

Arrisco nos jornalistas
desta nova geração
que mesmo sem possuírem
“Meios de Comunicação”
denunciam coisas graves
para derrubar entraves
desta querida Nação

Aqui vem o desafio
para transpor os bloqueios
trabalho com transparência
sem limites nem rodeios
vamos nos interrogar:
como democratizar
sem a posse desses meios?

Vamos fazer um País
primeiro dentro de nós
para saber o que quer
ouvir bem a sua voz
porque tem estrada dura
se não tiver estrutura
a calça rasga no cós

Terminando vou falar
um pouco lá do sertão
onde os bichos utilizam
toda a sua vocação
possuidores dos meios
mesmo estando nos arreios
fazem comunicação

O jumento locutor
nos fornece hora certa
o cachorro quando late
põe segurança em alerta
galo cantando à granel
é sinal que o coronel
tá debaixo da coberta

Um jumento um dia desses
chegou a se revoltar
depois de duzentos anos
vivendo a comunicar
o patrão sem consciência
trocou sua eficiência
por um micro celular

Bicho burro quando soube
que doaram a Embratel
dos meios de comunicar
só lhe restou o cordel
alevantou o assento
e deu uns tiros de vento
na venta do coronel

Quero saudar o IACS
de Beatriz e Raquel
alunas de lá da UFF
exercendo o seu papel
fazendo com muita graça
comunicação de massa
com livrinhos de cordel

Saúdo os participantes
deste evento genial
somente estarei ausente
no plano material
mas espiritualmente
estarei muito presente
neste tema essencial.

J ovens de todo o Brasil
O desafio taí
A mem mamãe varonil
O País clama por ti

B asta democratizá-lo
A mando seu semelhante
T odos andando na trilha
I rmanados nesse instante
S audando a Democracia
T endo assim muita alegria
A ser um participante

M eu livrinho registrou
E ste flagrante bonito
L eiam com bastante amor
O que nele tem escrito

13.1.06

“Só Jesus expulsa os demônios das pessoas!”?

Às vezes vejo tanta mediocridade à minha volta, que supervalorizo minha inteligência com pitadas de arrogância. Outras, no entanto, me dou conta de que sou uma ignorante irremediável. Quando desvio meu olhar do medíocre ou do meu próprio umbigo, percebo quanta coisa no mundo eu não conheço e nem nunca vou conhecer, porque não terei tempo de vida suficiente para isso. Parece que viver é sempre uma busca e um monte de coisas vai ficando no meio do caminho, para trás, ou num pra frente eterno... inalcançável. Cada nova descoberta aponta outras tantas cobertas. Estudar é um tapa na cara: “idiota, você pensa que sabe muito – você não sabe nada!” Tenho sido masoquista, mas preciso desses tapas sonoros pra me acordar dos meus transes travestidos de olhares superiores e frases certeiras. E esse estudo a que me refiro não tem um viés academicista, não é só ler tais e tais autores, tais e tais obras, é ler também as relações humanas que me cercam, me perpassam, é ouvir atenta as histórias de vida de pessoas que nunca puseram os pés numa universidade e são mais relevantes pra minha formação que muito blá, blá, blá de muito professor doutor em sala de aula. Mas é também ler os tais autores e as tais obras. E quando eu estou prestes a completar um quarto de século e percebo que os livros que eu ainda quero ler são muito mais numerosos que os que eu já li, e essa lista cresce continuamente, concluo abismada que minha ignorância é irremediável e só tende a crescer, já que quanto mais eu estudo, mais percebo quanta coisa ainda me resta a saber. Eu já me prometi escrever menos e ler mais. Mas eu sou inquieta demais pra conter palavras, quando elas ululam dentro de mim. E quanto mais leio, mais delas ululam, ecoam, vibram, chacoalham, ziguezagueiam sem me deixar em paz um segundo sequer. Só me resta expulsá-las, escrevê-las aos montes, pra voltar à leitura mais concentrada. Sorriam, vocês acabam de presenciar um exorcismo!

10.1.06

Disciplinas e indisciplinas

Não sou lá muito disciplinada para o estudo. Não sou lá muito disciplinada para nada... Agora, por exemplo, eu tinha que avançar minha leitura de "Vigiar e punir", do Foucault, pra fazer um trabalho pra faculdade. E cá estou. Linguagens não-verbais é o nome da disciplina. O livro é leitura obrigatória e o trabalho é tema livre: vou discorrer sobre mecanismos disciplinares aplicados na (de)formação educacional a partir da minha experiência de onze anos (1988-1998) no Instituto Abel (colégio de irmãos lassalistas de Niterói - infernal, diga-se de passagem!). A terceira parte do livro é sobre disciplina. E tem uma parte, logo no primeiro capítulo ("Os corpos dóceis"), que diz assim:

"O momento histórico das disciplinas é o momento em que nasce uma arte do corpo humano, que visa não unicamente o aumento de suas habilidades, nem tampouco aprofundar sua sujeição, mas a formação de uma relação que no mesmo mecanismo o torna tanto mais obediente quanto mais útil, e inversamente. Forma-se então uma política das coerções que são um trabalho sobre o corpo, uma manipulação calculada de seus elementos, de seus gestos, de seus comportamentos. O corpo humano entra numa maquinaria de poder que o esquadrinha, o desarticula e o recompõe. Uma 'anatomia política', que é também igualmente uma 'mecânica do poder', está nascendo; ela define como se pode ter domínio sobre o corpo dos outros, não simplesmente para que façam o que se quer, mas para que operem como se quer, com as técnicas, segundo a rapidez e a eficácia que se determina. A disciplina fabrica assim corpos submissos e exercitados, corpos 'dóceis'. A disciplina aumenta as forças do corpo (em termos econômicos de utilidade) e diminui essas mesmas forças (em termos políticos de obediência). Em uma palavra: ela dissocia o poder do corpo; faz dele por um lado uma 'aptidão', uma 'capacidade' que ela procura aumentar; e inverte por outro lado a energia, a potência que poderia resultar disso, e faz dela uma relação de sujeição estrita. Se a exploração econômica separa a força e o produto do trabalho, digamos que a coerção disciplinar estabelece no corpo o elo coercitivo entre uma aptidão aumentada e uma dominação acentuada." (FOUCAULT, Michel. "Vigiar e punir: nascimento da prisão". 18ª ed. Petrópolis: Vozes, 1987, p.119)

Bom, isso, né?! Não fosse uma exigência da disciplina, a leitura certamente estaria sendo mais prazerosa!...

8.1.06

Declaração de amor

Não esse amor romântico, possessivo, exclusivista. Não esse amor materialista, carnal, condicional. Não esse amor que exige, que demanda, que cobra. Não esse amor que necessita, que sofre, que vira mágoa, que vira ódio. Não esse amor que se humilha, que se anula, que depende. Não esse amor que machuca, que subjuga, que oprime. Não, isso não é amor de verdade. Essa é a construção social que fizeram do amor entre homens e mulheres. Nem esse amor que se confunde em paixão, combustão, chama intensa que se apaga. O que eu sinto é outra coisa, é amor, desse que vem vindo e vai ficando, se instala e não sai mais, desse que, de tão pleno, se basta a si mesmo, sem nada precisar sugar do outro, desse que não corresponde, é, desse que não precisa se afirmar com frases feitas, brilha na alma, desse que não escorre em lágrimas, sorri nos olhos, desse amor, o único amor, capaz de impulsionar uma revolução mundial. Todos deveriam amar um amor assim!...
- Eu te amo.

7.1.06

Férias?!?!?!

2006 cai em mim como avalanche!!!... Último semestre da Faculdade de Cinema. A UFF volta às aulas após longa greve. Janeiro, fevereiro (carnaval) e março!!! Trabalho de conclusão de curso com cerca de 70 laudas pra escrever + de 15 livros pra ler + pesquisa + um filme de curta-metragem pra rodar + umas disciplinas pendentes = x
Se conseguir resolver essa equação, me formo em abril.
E depois 2006 é só meu e eu faço dele o que quero!!!

Obs.: Até lá, não reparem se eu ficar um tempo sem escrever pra cá.

5.1.06

Um conto de Vinícius Piedade

O Vinícius eu conheci como um pirata inconformado desbravando mares no palco do Teatro da UFF, no solo Carta de um pirata, com coordenação artísitca da fantástica Denise Stoklos. Mas ali, fantástico era ele, o pirata, o Vinícius, o ator. Tempos depois, recebo um conto pela mala direta da peça: Letícia. "Ah, se eu me chamasse Letícia!..." foi o comentário que deu início a nossa amizade. Depois, eu li e reli seu livro de contos, Trabalhadores de domingo. E li seus contos ainda não publicados. E revi sua peça ainda mais duas vezes. E verei ainda muitas outras peças. E lerei outros tantos contos. Por ora, publico seu conto que me fez suspirar!...

LETÍCIA

Estava indo pra faculdade um pouco mais cedo do que o comum porque tinha uma reunião importante no Centro Acadêmico. Por falar nisso, um momento fundamental para o Centro Acadêmico. Estávamos organizando uma assembléia que reuniria alunos de todos os cursos, veja bem, estudante de economia lado a lado com estudante de teatro conversando com o de medicina paquerando a aluna de história discursando para a aluna de geografia e etc e tal. Claro, somos todos jovens, vemos praticamente os mesmos filmes e ouvimos as mesmas músicas, mudamos os mesmos canais na TV e pegamos o mesmo metrô, nadamos no mesmo mar e choramos a mesma morte (quando um ícone da juventude morre); mas o fato de um estudar no prédio de arquitetura e outro no de sociologia faz com que esses nunca nem se falem. E isso não pode acontecer nesse momento em que precisamos dos jovens unidos pra mudarmos algumas coisas nessa faculdade tão bagunçada. O reitor não faz nada e a Universidade está evidentemente em decadência. Isso todos sabem, dos mais engajados aos mais alienados.

Pois nessa reunião, eu seria o facilitador, ou seja, a pessoa que coordena e tenta fazer esse encontro não ser em vão.

Rio de Janeiro. Copacabana. Eu estava quase atrasado, tanto que comia uvas pelo caminho. No ponto de ônibus, olhei um pedaço de mar ao longe. Verde, verde, verde. Senti uma certa tensão no pescoço, então mexi minha cabeça pra todos os lados pra ver se relaxava. Não relaxei. Guardei meus livros na mochila e tirei do bolso um rascunho do que falaria pra abrir a reunião. Estava preocupado. Li um trecho em voz alta e de rabo de olho vi que uma senhora me olhou. O ponto de ônibus estava quase vazio, essa senhora, um cara de gravata e bigode (e pasta e sapato engraxadíssimo), um cara com uma caixa de chocolates (entrava em cada ônibus que parava, mas sempre que o motorista percebia que ele ia vender seus chocolates, faziam-no descer), uma moça grávida com saia de crente (com seu longo cabelo de crente, sua cara de crente e naturalmente sua pequena bíblia na mão) e uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça... Não consegui tirar os olhos dessa moça: essa moça me deixou fora de mim!

Ela estava um pouco perto, três metros à frente, e suas formas, sua carne, suas roupas, seu jeito de ficar parada, seu jeito de respirar, de ser e de estar me deixou estático. Quis ver desesperadamente seu rosto, seus olhos (olhar), seu nariz (inspirando), sua boca (molhada pela sua saliva), seu queixo (com ou sem furinho), precisava olhar aquele rosto. Meu pescoço ficou ainda mais tenso. Minhas pupilas dilataram quando ela olhou pra traz, como que pra ver aquele pedaço do mar que eu acabara de olhar, e pude ver como ela era.

Meu ônibus chegou e foi embora. Outro que também servia pra mim parou no ponto (a velha e o engravatado subiram) e também se foi. Olhei para o mar e percebi que estava confuso. Guardei meu texto no bolso de traz. O ônibus dela chegou. Ela que o fez parar esticando o braço direito com a mão e os dedos longos relaxados. Nem vi qual era o ônibus: entrei atrás precipitado, tropeçando, perdido, confuso. Ela me olhou por dois segundos e isso foi pra mim uma benção. Pagou sua passagem e se sentou em um banco de dois lugares VAZIO! Paguei a minha e voei para seu lado. Não sabia bem o que estava fazendo lá. Aliás, sabia mais do que sabia de qualquer coisa na vida, mas estava confuso. Pensei na reunião e achei melhor desligar o celular antes que começassem a me ligar pelo atraso. O celular dela tocou e ela, sem dizer alô, disse seu nome, disse Letícia. Falou qualquer coisa que não prestei atenção. Seu nome (Letícia, Letícia, Letícia) ainda reverberava na minha carne. Desligou o cel e olhou o mundo que parecia passear na janela.

Senti seu cheiro. Quis seu gosto. Senti um medo. Quis seu rosto. Senti vontade. Quis enredo. Senti vertigem. Quis sua rima.

Minha voz certamente sairia de mim gutural. Minhas pernas estavam bambas (inda bem que estava sentado!). Meu lábio inferior começou uma leve tremida (um tique nervoso de infância). Eu olhava pra frente e vi de rabo de olho que ela me olhou, não só me olhou, me secou, não só me secou, me desejou. Pelo menos assim quis ver a situação. Senti seu braço suavemente se esfregando no meu (e o quente do seu braço no meu, naquela altura, foi como banho de cachoeira pelando) e sei que foi de propósito.

Olhei em volta e vi vários passageiros. Odiei isso. Queria o ônibus vazio, só eu e ela, no máximo o motorista guiando e o cobrador dormindo. Um moleque cuspia pela janela. Um bebê chorava chupeta. Uma senhora falava mal do presidente. Um rapaz vestia o exército. Uma moça vestia uma tanga de praia modelo década passada. Um cara com cara de surfista e prancha de surfe na mão deu sinal. Uma mulher disse adeus no celular. Um casal sorriu em silêncio. Uma nuvem encobriu o sol. Sentia fome e calor. Sentia-me despenteado.

Pensei em Neruda. Pensei em levantar e lá da frente berrar Neruda olhando-a nos olhos. Ela me olhou novamente. Não, Neruda berrado não funciona. Pensei em recitar o mesmo Neruda no seu ouvido. Neruda disse que a poesia é de quem precisa, então, diria que fiz pra ela. Melhor ainda: Neruda em espanhol. Quando abri a boca pra começar, o ônibus fez uma curva e eu engoli ar. Não, Neruda não, vou de música, vou de Chico Buarque, vou cantar como que quem canta pra si mesmo, mas pra ela ouvir. Vou cantar aquela que ele diz assim com voz suave e sincera “ela desatinou...”! Mas e se eu desafinar? O mesmo medo que Chico tem me invadiu e eu entendi na carne a razão pela qual ele não faz shows...

Enquanto o ônibus nadava no asfalto quente do Rio de Janeiro de março (4 de março), eu tentava saber o que dizer pra ela que agora era minha miragem, minha bóia salva-vidas, meu compasso. Ela, meu desejo, meu tesão e meu romance. Ela, naqueles instantes que pareciam infindáveis, meu meio e meu fim. Minha utopia. Ela, minha expiração. Ela, minha inspiração. Tudo de mim pra ela. Se eu fosse pintor, um quadro. Se fosse jogador de futebol, um gol. Se fosse pirata, meu pote de ouro. Se fosse fugitivo, a minha liberdade. Se fosse dona de casa, uma torta de limão. Se fosse empresário rico, um iate. Se fosse árabe, mil camelos. Se fosse paulistano, um passeio na Paulista. Se fosse músico brega, meu maior hit. Se fosse o seu homem, um bebê. Ela, meu excesso e minha falta.

Não sabia o que lhe dizer em palavras. Olhei-a e ela sentindo-se olhada, relaxou a sobrancelha e mexeu no cabelo. Esse movimento fez com que seu cheiro inundasse o ônibus e nele me embebedei. Mais ainda: ela respirou fundo e soltou o ar como fazem os cansados, me deixando, de propósito ou não, nadar nessa extensão de seu corpo: seu hálito.

Quis expressar nos meus olhos o quanto a queria mas ela não me olhou.

Quis seus olhos pra lhe dizer que ela era minha musa do agora, tal como Ana foi de Lenine outrora, mas ela olhou a hora.

Pensei em recitar um trecho de Os Miseráveis de Victor Hugo mas achei prepotente. Pensei em ir de Camus mas achei sem nexo. Pensei em ir de Bono Vox e achei confuso. Ela me deixava confuso. Ela com seu jeito être (ser e estar em francês), me transformava em pó. Meu eu dissolvido a seu lado e ela na dela (talvez me dando mole, talvez nem sabendo da minha existência).

De repente ela me pediu licença. Olhava-me fixamente sorrindo sorriso educado. Por Alá, ela olhando pra mim sem pudores (e sorrindo)!

Seus olhos em mim. Meus olhos nela, em sua carne (em sua boca, seus ombros, seus seios) e em sua alma. Invadia-a sem pedir licença, sem me acanhar, sem me sentir acuado.

Ela iria descer e disse sem dizer que iria embora pra sempre, tal miragem que some mais cedo ou mais tarde.

Falei claro, um claro escuro, sem voz, um fio de voz, um fio de mim, mas não dei a tal licença. Reuni o dobro de coragem que sempre tive, o triplo da coragem que precisava pra falar com cinqüenta mil no movimento estudantil e disse pra ela entre romântico e pateta, entre confuso e poeta: me dê seu endereço. Preciso te mandar uma carta, uma carta perdida, uma carta traída, uma carta amassada, uma carta estampada de mim confuso e real, verdadeiro e banal, uma carta desconhecida, uma carta desesperada, uma carta cantada, uma carta bailada, uma carta banhada de sangue-de-vinho-de-suor-de-gozo-de-perfume o meu, o meu eu expresso nessa carta pra tu!

Por favor, me dê seu endereço.

Pelo amor de Deus, me dê seu endereço.

Ela foi paciente. Sentou-se e sorriu lisonjeada (as mulheres amam ser cortejadas) e me deu seu endereço que bem que pode ter sido inventado pra que esse cara com cara de jovem utópico não lhe encha de palavras vãs. Foi-se embora, desceu dois pontos depois do que tinha que descer, mas me deu um suave beijo na bochecha. Um beijo molhado que me deixou feito múmia: estático.

O tempo se passou desde esse dia. Três dias. Não fui mais na facu. Jurei-me doente. Esse amor reprimiu minha ideologia. Toda minha ideologia dissolvida nesse amor. Minhas causas (micro-revoluções) se voltaram todas pra ela. Estou de fato doente. Estou com febre. Estou com tontura. Dor no corpo. Estou confuso. Acho que seu beijo me transmitiu um vírus ou um feitiço. Estou com febre. Tento escrever-lhe a tal carta mas nada sai de minha boca, nada sai das minhas mãos, nada sai de mim. Estou com tontura. Não sei como começar, não sei como conduzir, não sei como encerrar. Dor no corpo. Eu que sempre redigi discursos agora estou estático, feito múmia. Estou confuso.

Não paro de olhar minha folha de sulfite em branco, vazia, carente, querendo umas letras.

No papel só o título resumido em uma palavra escrita com caneta preta e letra tremida, dessa que é minha carta mais infindável: Letícia.

LETÍCIA

Vinícius Piedade

4.1.06

Marcela Giannini, finalmente publicada!

A Marcela escreve passionalmente e maravilhosamente bem, mas não publica. Essa menina, grande amiga, que me incentivou a publicar os meus escritos, ela mesma não publica os dela! E ela, sim, tem um grande talento para a escrita e uma sensibilidade rara. Já tentei editar um fanzine com ela, já tentei convencê-la a criar um blogue e, finalmente, consegui publicar um conto seu aqui - um dos que eu mais gosto! Marcela, você ainda vai me dedicar um livro!
A PRESA
“Se algum dia precisar de minha vida,
venha e tome-a.” (Tchekov, “A Gaivota”)


O amor me tomou como a uma presa desavisada, como num livro que eu li, quando era criança.Uma enorme ave de rapina a capturava- eu imaginava um falcão, mas poderia ser qualquer ave ; a presa se debatia no ar, lutava contra seu caçador.Via-se sua lânguida silhueta agitando-se violentamente contra as garras que a possuíam, e o sol que nascia ao fundo banhava de dourado seu suplício.Até que, cansada da luta inútil, a presa finalmente deu-se por vencida.Fatigada, abandonou o corpo cansado às garras do mais forte.Seu cansaço era tão grande, parecia tão pequena e frágil diante de seu caçador, que sua desistência de lutar, de se defender, faziam seu abandono parecer quase doce.

A ave grande, irmã do vento, remava o ar com suas grandes asas, segurando firme a pequena presa; tão indefesa, delicada, o peito palpitante de vida, quente, a respiração ainda rápida e sincopada, assustada...tão frágil sob o tatalar das asas gigantes que a transportavam, rasgando os céus, para lugares distantes, longínquos, que jamais sonhara conhecer, pois era, até então, apenas um pequeno animal da terra, a que não foi dado vislumbrar aquelas alturas e todo aquele mundo visto de cima; montanhas silenciosas e um céu sem fim, a temperatura que a gelava, lá embaixo passavam rios que jamais vira , imensas florestas escuras, deviam ser muito antigas, o mundo era bom de se ver lá de cima...Tudo era pequeno abaixo deles, o mundo era nada.Sentiu-se grande, sentiu-se dona do céu, tinha tudo, era falcão também...Por momentos, em seu encanto com o que via, esquecera-se de seu medo.As garras seguravam firme seu pequeno corpo, rasgando um pouco sua frágil pele, deixando escorrer um fino filete de sangue de seu peito, bem do lado esquerdo.Mas seu olhar para toda aquela imensidão a distraía de tal dor.

A presa, de olhos vidrados, já totalmente arrebatada, apenas pensava: "Não me deixe cair".

Marcela Giannini

3.1.06

Filme imperdível - últimos dias!!!

TEOREMA
Itália, 1968, 98'
de Pier Paolo Pasolini.
com Terence Stamp, Silvana Mangano, Massimo Girotti, Laura Betti.
Considerado o mais importante filme de Pasolini, Teorema volta com cópia nova. Em Milão a vida de uma rica família burguesa é totalmente modificada por um misterioso visitante, que seduz a todos e questiona seus valores.

17 horas
Cine Arte UFF
Rua Miguel de Frias, 9 - Icaraí - Niterói

Obs.: O filme em questão sai de cartaz nesta sexta. Quem perder, perdeu!