29.9.08

uma coisa qualquer

tem uma coisa qualquer
um desassossego
tem um mar que se agita na ponta dos dedos
uma onda que quebra nas veias
tem uma pulsação nos cílios
tem um fogo nas bochechas
e nos olhos, mil centelhas
tem um bicho faminto
que passeia
uma fera
que contempla a paisagem
uma sereia
que não se sabe
e caminha passo a passo pela areia...
tem um ator numa orelha
na outra, um personagem
às vezes não se escutam
falta direção
mas eles vão...
o que importa é a viagem!...
a porta aberta dando passagem
seja para o que for
ou pra receber
pro que der e vier
tem formiga no pé
e um elefante no dorso
a asa vai no quadril
contornando sinuoso
qualquer ardil
tem uma coisa qualquer
uma angústia inquieta
uma calma forjada
um sorriso de esfinge
no meio da madrugada
tem uma coisa qualquer
um nariz que finge
e um joelho que entrega a charada
tem uma coisa qualquer
uma contradição na essência
e uma simplicidade imensa
tem uma coisa qualquer
tem algo que pulsa
tem algo que pensa
tem sempre uma coisa qualquer
intensa
tem sempre uma explicação pretensa
uma idéia avulsa
mas nunca se sabe exatamente o que é
essa coisa qualquer
que pensa e pulsa e finge e passeia
que não se sabe centelha, esfinge
essa coisa meio ator meio sereia
que só se vê de passagem
essa fera com fome de primavera
quando menos se espera
não é uma coisa qualquer
invento, alucinação, miragem
esse mar quebrando na veia
sem dizer a que veio
ou o que quer
só deixa visível na areia
um contorno da coisa
mulher



22.9.08

às vezes espero
outras, exaspero
mas sempre ardo

um dia tardo
outro falho

em dias de hoje
o amanhã
se empilha de ontens

ah, o tempo que era quando!
nem um pouco
tampouco tanto
(ando no fio da navalha)
meu tempo é quanto
e a cor do saldo
salta vermelha.

7.9.08

Exposição: PALAVRA DE PINTURA

A artista plástica Maysa Britto, amiga queridíssima, vai participar desta exposição junto com outros artistas no Parque Lage, com abertura na próxima terça, dia 9, às 19h. Imperdível!


4.9.08

Reparei que você tem covinhas quase iguais às minhas. Um pouco mais acentuadas, porque estão sempre lá, marcadas, mesmo quando não há riso. Tenho a impressão de que você está sempre sorrindo. Imagino que é pra mim. Ou finjo. Tenho vontade de cavar as suas covinhas com as pontas dos dedos. Suavemente. E ir descobrindo pouco a pouco de que você é feito. Quero conhecer o que não é sorriso em você. Alguma coisa que ninguém vê. Um buraco, não no rosto, mas no peito. Uma marca profunda na palma da mão. Uma sombra nos olhos. Uma dor escondida entre os dedos dos pés. Quero te conhecer por inteiro, com as pontas dos dedos. Desvendar todos os seus segredos, os seus medos, seus anseios. E depois pousar lentamente tua cabeça entre meus seios, casar teus cabelos com meus dedos, meus cabelos nos teus dedos, pêlos formando alianças. Eu te deixaria ver cada pinta do meu corpo, só pra você perder a conta e dar risada. E eu riria junto, e te contaria umas histórias. Te inventaria um poema na hora, escreveria na tua pele. E me entregaria para a tua escrita nua. E também ouviria tuas histórias, rindo de tudo porque tudo eu acharia lindo. É tudo incrível ao redor dessas covinhas! Uma lágrima em ti teria aura de riso. E seria bonito. Não a lágrima em si. Mas essa fragilidade de mesmo na dor, não poder deixar de sorrir. E eu riria junto com você na tua dor, te fazendo secar as lágrimas e voltar a ser só risada. E riria junto nas alegrias e das coisas engraçadas. Você faria tudo parecer uma piada. A dor escondida entre os dedos dos pés. A marca afundada na palma da mão. Os buracos cavados no peito. E todos os medos. E a tudo a gente enfrentaria às gargalhadas! Unir nossos sorrisos seria a bala na espingarda, nossa arma secreta. Mas... eu ainda tenho o meu próprio medo. E eu ainda não cavei os seus segredos. Ainda sou só olhos. E você, só covinhas. Quase iguais às minhas. Quase...

1.9.08

O que Ela espera é outra coisa. Não é um esperar de espera. É de esperança. Ainda assim é desespero. Como se a esperança esperasse no alto da torre mais alta. E Ela, agarrada às suas tranças, se encontrasse no meio. Muito alto pra cair. Muito alto pra subir. E se agarrasse ferozmente no emaranhado desses cabelos, para permanecer ali, com medo do olhar para baixo, sem forças pra ir além. Ali no meio, à espera de um milagre. De uma esperança-pássaro que a resgatasse. Mas a esperança era a princesa no alto da torre, com seus longos cabelos esvoaçantes para lá e para cá ao sabor do vento. Prender-se a um fio, um fio de esperança, já era um feito e tanto naquele vendaval que sacudia o mundo, e levava seus cabelos para longe em questão de segundos. Mas eram tão lisos e sedosos os cabelos da princesa, que ao subir se deslizava, tornando sempre ao mesmo ponto. Como subir uma escada rolante que desce. Ou andar na esteira. Então a esperança é isso. Exercício. E não algo que se alcança, um lugar a que se chega. É somente o que nos fortalece. Com os músculos cansados e a respiração ofegante, Ela deixou-se deslizar até o chão. Soltou o fio fino que retia na mão. E com lágrimas nos olhos, contemplou o aceno de adeus dos cabelos esvoaçantes. Exausta, vencida, humilhada, sentia-se fraca. Ela não sabia, mas estava mais forte.