19.9.14

NÃO É SOBRE DESPEDIDAS

e então você me dá as costas
e eu te vejo caminhando
as mãos nos bolsos
os olhos acompanhando os buracos da calçada
a solidão pendurada nos seus ombros
se balançando pra lá e pra cá
te fazendo cambalear um pouco.
o dia vai clareando
e você sumindo no horizonte...
quer dizer, não, não há horizonte!
você some ao dobrar uma esquina
de repente
as luzes dos postes se apagam
o funcionário sobe a porta de ferro da padaria,
fazendo um enorme ruído rasgar o dia
e um bando de pombos revoar
para o outro lado da rua.

outro jeito de ir embora
é se distrair observando
a curvatura da cinza do cigarro que se queima longamente,
um rótulo de cerveja,
as unhas descascadas,
ou qualquer conversa desinteressante simulando um enorme interesse
enquanto tenta não pensar em nada.
é não olhar para trás,
e nem perceber a primeira cena.

ir embora é carregar silêncio nos pés e mordaças no peito,
e nós sabemos como ninguém estar sempre indo embora.

mas isso não é sobre despedidas.
é sobre encontros.
a gente se esbarra.

é que desde a primeira vez,
sempre foi o último beijo.

7.9.14

PROGRAMA DE GOVERNO PARA ALMAS DESGOVERNADAS

PROGRAMA DE GOVERNO PARA ALMAS DESGOVERNADAS
ou PROGRAMA DESGOVERNO
para Presidente


Essa é uma proposta da sociedade civil desorganizada,
representada por mim que não represento ninguém.

MEDIDAS PRELIMINARES

Tente ficar uma semana sem olhar os relógios.
Perca os horários, se atrase, esqueça os compromissos.
Deixe alguém esperando, não vá.
Se a pessoa estava lá, foi pelo relógio.
Livre-se da culpa.

Agora você já se preparou para o nosso programa de governo.
A vida é sua. Governe-a.
Não acate os meus comandos.
A partir de agora, estou falando apenas comigo.

I. Ao sair do apartamento, aperte todos os botões do elevador. Aproveite a viagem. Observe como a porta abre e fecha, abre e fecha, como as luzes dos botões uma a uma vão se apagando. Tente sentir o efeito da inércia no seu corpo quando o elevador para em cada andar, se sobe ou se desce, se é brusco ou se é leve. Pode ser que você sinta vontade de pular. Não se contenha. Pegue o interfone, ligue para o porteiro e deseje-lhe bom dia. Se rolar assunto, converse. Observe minuciosamente seu rosto no espelho, tente encontrar um cravo ou espinha; esprema. Se não tiver, busque um fio de cabelo branco e arranque. Se não achar, faça caretas. Quando menos se espera, no auge do divertimento, o elevador chegará ao seu destino. Se lhe agradar, refaça a viagem. Mas é recomendável sair para não se entediar. [Tema: Transporte]

II. Ao alcançar a rua, libere a maconha. Seja generoso, e ofereça um tapinha a cada transeunte que cruzar seu caminho. Alguns podem estranhar, e ter reações adversas a você. Há sempre um tempo de adaptação quando se altera a legislação do cotidiano.  Haja o que houver, aja com muita naturalidade, e siga caminhando. Se der vontade de entrar num parque pra curtir a onda, aproveite para tomar um banho de chafariz. Libere-se das roupas. Pise a grama sem sapatos. Corra entre as árvores. Se tiver um parquinho, aproveite o balanço, a gangorra, tudo o que tem direito. Depois, convença o pipoqueiro a lhe dar um punhado de pipocas. Vá até a carrocinha de churros e peça um pouco de doce de leite por cima. Os trabalhadores das carrocinhas de comidas dos parques e praças costumam ser simpáticos e generosos. Se não forem, ofereça-lhes alguma coisa de presente, por exemplo, uma caneta, um isqueiro, um óculos, um bloquinho de notas, ou qualquer coisa que carregue consigo e não seja dinheiro. De todo modo, arrume algo de comer para seguir adiante. Se for preciso, encontre uma feira e prove todas as frutas. A larica é impiedosa e você precisa se satisfazer. [Tema: Liberação das drogas]

III. Tente encontrar um orelhão. Um orelhão que funcione. Mas não se desespere. Aproveite o passeio entre um orelhão e outro, contemple a paisagem. Se só tiver barulho e fumaça, carro e gente, muito carro e muita gente, contemple ainda mais calmamente. Tente distinguir no meio de todos os barulhos juntos cada barulho singular que compõe essa orquestra. Observe as expressões de cada pessoa e tente imaginar no que ela pode estar pensando. Pense nela por algum tempo, faça-a existir para você. Para chamá-la de algum modo na sua memória, invente um nome. Pode ser, por exemplo, algo que ela esteja usando. Aquela mulher ali se chama Bolsa Vermelha, o homem do outro lado, Gel no Cabelo, e por aí vai. Atravesse a rua fora da faixa, contornando em ziguezague o emaranhado de carros, e não se esqueça de cumprimentar cada motorista com um leve aceno de cabeça e um sorriso cordial. Quando enfim encontrar um orelhão - um orelhão que funcione -, ligue para um número que se lembrar de cor - a sua mãe, um velho amigo, o mecânico, o salão de beleza, a secretaria da faculdade, qualquer um. Se não tiver cartão (ninguém mais tem cartão de orelhão), ligue a cobrar. Diga que precisa conversar um pouco, e converse um pouco. Não importa o assunto. Mas não minta, não invente desculpas (não há culpa). Ao deligar, dirija-se à pessoa mais próxima e peça a sua opinião no assunto. Se for preciso, caminhe com ela alguns passos, e ouça atentamente tudo o que ela tem a lhe dizer, mesmo que seja só um “Vá se foder”. Considere a sua opinião. Se julgar justa, vá foder (talvez seja preciso recorrer novamente ao orelhão, e ligar imediatamente para alguém que possa fazer isso com você). [Tema: Comunicação]

IV. Pegue o ônibus mais próximo. Pule a roleta (a tarifa zero já está contemplada no debate sobre os elevadores, e consideramos válida para todos os meios de transporte). Quando sentir vontade, dê o sinal e desça. Pegue outro ônibus qualquer. Passeie um pouco. Dê o sinal e desça. Pegue outro. Faça perguntas aos outros passageiros sobre os lugares por onde passam. Indague de onde vêm, para onde vão, o que fazem. Tente conhecer o modo de vida de cada pessoa, do que gostam, o que comem, seus hábitos e costumes, sua cultura, enfim. Peça para ela cantarolar um trecho da sua música preferida. Quando algo da janela lhe chamar a atenção, aponte. Fale um pouco sobre isso. Conheça a opinião do seu parceiro de viagem. Observe cada rua, mesmo que já a conheça, como se pela primeira vez. Estranhe o mínimo detalhe. Questione o significado daquela inscrição no muro – você está numa antiga caverna. Aos poucos, após uns tantos ônibus e outros tantos passageiros, você vai perceber que está conversando em outro idioma. Você já aprendeu a língua. Desça onde estiver. Caminhe um pouco a pé. Já sente saudades de casa? [Tema: Turismo]

V. No local de trabalho, algumas recomendações são necessárias. Por exemplo, deixe para amanhã o que você pode fazer hoje. É preciso se concentrar, e conter o impulso de agir. É preciso não pensar nisso. Não pense no amanhã, e concentre-se no aqui e agora. O que você tem pra fazer? Não faça. Se a angústia de não fazer nada se apossar de você, faça algo que não seja da sua alçada. Se você é secretária e deve redigir um memorando, e há uma servente encarregada da limpeza, convença-a a escrever o memorando e varra com muito afinco o chão da sala. Ela pode objetar que não sabe escrever um memorando. Você terá de persuadi-la de que todo mundo é capaz de escrever um memorando, se tiver vontade, e de mais a mais, ela já está de saco cheio de varrer, e que encare então como um momento de descanso, não precisa levar tão a sério, etc. Certamente ela se esforçará, bem como você. Ao final, o chão da sala estará impecável e o memorando irretocável. Mas se fosse amanhã, estaria melhor. Pense nas infinitas possibilidades de fazer amanhã o que você deveria fazer hoje. Então agora se concentre, e não faça mais nada. Quem inventou essa história de que “tempo é dinheiro” se esqueceu de dizer que o seu tempo é dinheiro no bolso de alguém. Não gaste seu tempo sendo produtivo. A não ser que produza algo para si mesmo ou para alguém querido, ou para a humanidade inteira. Você pode levar para o trabalho agulha e linha de crochê a fazer uma linda blusinha para usar na primavera. Ou então, usar o telefone do escritório e discar números aleatórios, propagandeando nosso programa de governo a quem atender. Talvez você seja demitido. Mas se for criativo, dará um jeito de sobreviver. A criatividade é a alma do negócio. [Tema: Emprego e renda]

VI. A essa altura, você já deve estar cansado. Descanse. Se alimente bem e tire uma soneca. [Tema: Saúde]

VII. Selecione alguns livros para ler. Estire-se na cama. Pegue o primeiro, contemple a capa, leia o título em voz alta, dê uma folheada, leia um parágrafo, se detenha em uma frase, observe o sumário, veja o número de páginas, dê uma última folheada rápida de trás pra frente com o auxílio do polegar; apoie sobre a mesinha de cabeceira. Tome nas mãos o próximo livro, contemple mais demoradamente a capa, e repita todo o processo pulando uma etapa, como talvez o sumário ou a leitura de um parágrafo. No terceiro, pule duas etapas. Do último, apenas olhe rapidamente a capa, e largue-o sobre a pilha com os demais. Não pegue nenhum livro, não se apresse em começar a ler. É o livro que deve pegar você. Perceba o lindo bloco de livros empilhados que você formou: livros de várias cores, formatos, texturas, dispostos uns sobre os outros de forma irregular. Você está em um museu, diante de um objeto de arte contemporânea. Sinta-se tocado pela obra. Agora, acomode-se na cama e contemple a brancura do teto. Aos poucos, os pensamentos vão se soltando, você não os controla. Deixe-se levar. O teto branco para os olhos e o silêncio para os ouvidos são o passaporte para a sua viagem. Memória e imaginação, história e ficção, considerações filosóficas e criação artística, fluirá tudo junto sem saltos, e sem a preocupação de fazer distinções. Nada mais posso falar, porque você já não me ouve. Não sei quanto tempo vai se passar, 5 minutos ou 2 horas, a marcação do tempo não dá conta de dizer essa duração. Alguma coisa vai te chamar. Pode ser um incômodo do corpo querendo mudar de posição. Foi bom pra você? [Tema: Educação]

VIII. Olhe pela janela. Um casal passeia pela rua de mãos dadas e parece muito feliz. Um olhar cúmplice, um carinho nos cabelos. O casal caminha sem pressa. Para no ponto de ônibus, e conversa sobre coisas banais. Talvez estejam decidindo o cardápio do jantar, a lista de compras do supermercado, ou comentando um acontecimento do dia sem muita relevância. Um casal como outro qualquer, falando qualquer bobagem, só para estar junto. Enquanto o ônibus demora, o casal se namora. Falam algo amável, se olham com carinho, e se beijam. Permanecem abraçados por algum tempo em silêncio, aguardando. O que aguardam não é apenas um ônibus. Há sonhos deitados nos olhos. O nome de um filho, talvez. Uma viagem no fim de semana. A cabeça no ombro se ergue subitamente com a chegada do ônibus. O casal desperta e volta a se falar, sobe os degraus, avança para a roleta, se protege dos trancos que o motorista dá, se acomoda no banco e segue em frente. Você é capaz de dizer se o casal é um homem e uma mulher, dois homens, duas mulheres, transexuais, travestis? Você se pergunta o sexo dos passarinhos quando eles namoram na sua janela? Deixe a janela aberta. [Tema: Combate à homofobia]

IX. Torne-se um colecionador de chaves. Vá a um antiquário e procure por chaves remotas. Pegue sorrateiramente todas as chaves que encontrar e faça cópias. Crie chaves novas para fechaduras inexistentes. Acumule pequenas chaves de gavetinhas, chaves de portas de armários, suntuosas chaves de portões de ferro antigos, chaves de cadeados de variados tamanhos, as chaves das portas, as chaves dos carros. Vasculhe a sua casa e encontre chaves que você já não lembra o que abre. Colecione possibilidades de abertura. Você deve abrir as portas dos presídios, você deve abrir as portas dos hospícios, você deve abrir as portas das escolas, você deve abrir as portas dos quartéis, abra a porta da sua casa, abra todas as casas, abra as porteiras, não abra uma conta no banco. Você deve abrir a mente, você pode abrir as pernas. Abra os olhos, abra as mãos. Você deve abrir as fronteiras dos Estados. Você deve abrir uma roda e dançar. Não abra um negócio. Abra passagem. [Ainda não inventaram um tema para as possibilidades de abertura]

X. Ignore a sirene.

meu carro se encosta ao meio-fio
sempre que ouve sirenes às suas costas

desvio sem pensar
- gesto automático
de quem foi
educado.

desaprender
demanda muito esforço

conter o impulso
e não girar o volante
- lembrar-me por que -
olhar no retrovisor e ver
identificar a viatura
cantarolar distraída
uma música qualquer
permanecer
[se possível, reduzir a velocidade]

para a polícia
eu não abro passagem.
[Tema: Desmilitarização das polícias]

XI. É noite. Você nem se deu conta. Está sentado num banco de praça. Havia passado a tarde inteira envenenando com milhos transgênicos os pombos da cidade. Olha em volta procurando pombos agonizantes, mas a praça está tomada de ratos, uns com bico, outros com um cotoco de asa. As criaturas estranhas da noite surgem de todos os lados. A metamorfose já começou, não adianta correr para casa. Você tenta levantar o pé, mas ele está grudado ao chão, como a um ímã. Então você impulsiona os pés para frente e começa a deslizar do banco, até seu corpo todo alcançar o chão. Segue rastejando seu instinto de cruzar a praça. Das portas dos prédios, dos estabelecimentos comerciais, jorram grandes sacos pretos de plástico, formando montanhas, primeiro nas esquinas, depois alcançando de ponta a ponta toda a calçada. Você rasteja com dificuldade, e percebe que o cerco está se fechando. Os sacos, muito cheios e pesados, começam a pender dos montes e rolar para dentro da praça. Você se volta para o outro lado. Os sacos avançam como tentáculos, de todos os cantos. O ar torna-se irrespirável. Os ratos festejam a chegada da primavera. Escalam as montanhas com guinchos de alegria. Você não tem a mesma agilidade. Está digerindo um boi inteiro como uma sucuri. Rasteja pesadamente. Os sacos pretos formam um plasma que escorre e vai te engolindo aos poucos. Você ainda tenta gritar por socorro. De repente, percebe que você pode estar envolvido num sonho, tudo não passa de um terrível pesadelo. Concentre-se, e você vai acordar. Concentre-se mais um pouco, tente abrir os olhos. Talvez você seja um ser rastejante soterrado por sacos de lixo. Durma bem. Você pode sonhar que é um ser humano. [Tema: Meio Ambiente]

XII. É assim mesmo, a comida já nasce na prateleira do mercado, querendo te devorar. Você está na cidade. Você planta dinheiro para colher alimentos. O dinheiro é a sua semente. Nada brota sem dinheiro. Enterre uma nota de 100 reais em algum canteiro; regue todos os dias. Mastigue moedas de todos os tamanhos, estraçalhando os dentes. Se alimente bem. Não dispense uma boa salada: tempere notas de 10 e 20 com sal, azeite e vinagre. Cozinhe as de 5 em fogo brando. As de 2 são mais difíceis de engolir, leve ao fogo baixo na panela de pressão por 30 minutos. Você pode gratinar as de 50 levando ao forno; fica uma delícia! Não pense que a nossa culinária é pouco variada. No Brasil, os pratos típicos são servidos em reais. Os grandes chefes franceses nos oferecem pratos em euro. Já os fast foods americanos são preparados com dólares. Você pode variar o paladar frequentando uma casa de câmbio. E há ainda uma variedade enorme de cartões de crédito. Não se esqueça de regar diariamente aquela nota de 100. Corte o dinheiro em bifes. Quem rasga dinheiro é maluco. Coma todo o dinheiro que tiver no prato; evite o desperdício. Quanto mais dinheiro tiver, mais você deve comer. Engula todas as notas, as moedas, os dentes, os cartões, a conta no banco, a conta no banco da Suíça, as grandes propinas, os pequenos subornos, o desvio de verbas, os lucros, os rendimentos das ações, de todos os investimentos lícitos e ilícitos. Se sobreviver, regue a nota de 100. E bon appétit! [Tema: Alimentação]

XIII. Tire o dia para ir à praia. Sinta a brisa no rosto, os raios solares aquecendo o corpo. Estenda uma canga e estire-se na areia. Permaneça lá deitado a tarde inteira. Não saia antes do pôr-do-sol. Ao chegar em casa... Bom, muito se fala hoje em energia eólica e energia solar. O que não se pergunta é de onde tiram energia o sol e o vento? Sinta a moleza bater no seu corpo. É isso mesmo. Você esteve a tarde inteira sem fazer nada e está sem energias, exausto. Precisa se recarregar com um bom banho e uma dormidinha. Você forneceu muita energia para o mundo hoje. [Tema: Energia]

XIV. More num tênis All Star. More em qualquer tênis. Num da marca Mike da vitrine do camelô. Nas suas Havaianas. Em qualquer chinelo. More numa sapatilha, numa sandalinha, num coturno. More dentro das suas botas. Nos seus saltos. Nos seus baixos. More nos seus sapatos. E vá a qualquer lugar. Você pensou que precisava de uma casa para habitar o mundo – ah, o hábito! – e por isso tantos sapatos. Agora experimente dançar descalço. Você é um rei no seu palácio. Você mora nos seus pés. [Tema: Moradia]

XV. Na queda, o mercado fraturou um osso. Na alta, saiu do hospital. O mercado tem sempre um atendimento muito rápido e eficiente. Com a saúde financeira, não se brinca. Para evitar doenças, tem-se uma vacina: injeta-se dinheiro aqui e ali. Enquanto você morre a cada dia, o mercado sobrevive, com hospitais de alta tecnologia e um psiquiatra exclusivo para tratar de suas crises. Nós não temos nada disso, e por isso somos loucos. Rasgamos dinheiro. Mas não rasgamos apenas o nosso dinheiro, ou haveria um déficit na balança comercial. Rasgamos também o dinheiro alheio. Todo o dinheiro do mundo deve ser rasgado igual, para manter o equilíbrio econômico. Na fase avançada do descapital, haverá apenas um tipo de banco: o banco de praça, onde a gente vai se sentar, relembrar os velhos tempos, e dar muita risada. Como éramos loucos de nos rasgar por dinheiro! [Tema: Economia]

XVI. Arrume tintas. Tinas de todas as cores. Pinte as paredes, os móveis, os objetos. Pinte os muros, as calçadas. Pinte as roupas, os sapatos, os automóveis, os eletrodomésticos. Pinte os braços, as pernas, os dedinhos, as bochechas, os cotovelos, as orelhas. Pinte cada coisa de uma cor, vermelho, amarelo, branco, preto, verde, azul, rosa choque. Misture as tintas, invente cores, receba as cores dos outros e integre nas suas pinturas. Descubra cores novas e fique maravilhado. Admire todas as cores. Deslumbre-se com a variedade de tons de que é feito o mundo. Azul claro, escuro, turquesa, celeste, bebê, azul Yves Klein. Seja aquela performer nua imprimindo a tinta do corpo na tela. Seu corpo é uma obra de arte. Toda cor é bela. [Tema: Combate ao racismo]

XVII. Você tinha medo do escuro e por isso aprendeu a dormir com as luzes acesas. Você percebeu que dormir era uma forma de apagar as luzes, e por isso tantas insônias. Você tinha medo de cair, mas não evitou as alturas. Já se acostumou com as quedas e as fraturas expostas. Você tinha medo daquele palhaço de brinquedo que ganhou de presente e lembrava uma cena de Poltergeist. Não podia simplesmente livrar-se dele, para não perdê-lo de vista e ser surpreendida com a sua visita, então o manteve trancado durante toda a infância dentro do armário. Você ainda tem medo de filmes de terror, e não sabe mais do paradeiro daquele palhaço. Tem medo de sofrer um acidente de carro, tem medo de que um avião caia na sua cabeça sempre que ele voa baixo, e sempre tem medo de que um caminhão tombe em cima de você com toda a sua carga. Você tem medo de raios e trovoadas, embora goste muito da chuva. E tem muito medo de levar choque, de chuveiros elétricos, e de tomadas, e de trocar lâmpadas. Tem um medo irracional de baratas, e de encontrar minhoquinhas entre as folhas de alface ou dentro da goiaba. Você sempre se assusta ao lavar verduras. Todo susto é o palhaço que ressurge do nada. A cena do chuveiro. Um roteiro de Hitchcock. Você sempre corre perigo. Não pode mais trancar seus medos dentro do armário. Você colecionou muitos medos e eles já não cabem no cofre. Você tem medo do escuro e tem medo de trocar lâmpadas. Você não pode viver só. Todo mundo precisa de colo quando acorda de um pesadelo. Todo mundo tem seus medos. Vem cá, criança. Deixe que lhe façam cafuné nos cabelos. A lei de todo filme de terror: só é pego quem se separa do grupo. Se estamos juntos, o palhaço não pode nos alcançar. [Tema: Segurança]

XVIII. Às vezes é bom sair da cidade, sentir o cheiro de terra molhada, descobrir de onde vem a batata. Até esbarrar nos arames farpados. No campo, nem tudo são flores. Um dia, inventaram fronteiras e propriedades. Aí hoje alguém diz “Vá plantar batatas!”, e você não pode. Não tem terra. É preciso cavar a terra com as próprias mãos e arrebentar os arames farpados com os dentes. Não há flores no campo. As gengivas sangram. Vá plantar batatas. E faça nascerem as flores do campo. [Tema: Reforma agrária]

XIX. Eu sou mulher.
[Tema: Combate ao machismo]

XX. Tente ficar uma semana sem olhar os relógios. Ao sair do apartamento, aperte todos os botões do elevador. Ao alcançar a rua, libere a maconha. Tente encontrar um orelhão. Pegue o ônibus mais próximo. No local de trabalho, algumas recomendações são necessárias. A essa altura, você já deve estar cansado. Selecione alguns livros para ler. Olhe pela janela. Torne-se um colecionador de chaves. Ignore a sirene. É noite. É assim mesmo. Tire o dia para ir à praia. More num tênis All Star. Na queda. Arrume tintas. Você tinha medo. Às vezes é bom sair da cidade. Eu sou. Viver é uma arte. [Tema: Cultura e Arte]

CONSIDERAÇÕES FINAIS

Você nunca tem tempo.
É o tempo que tem você.

Você pensa que possui as coisas que você tem,
mas é você a propriedade das coisas.

As coisas são seu patrão.
A subtração do seu corpo,
o sequestro do seu tempo.

Você não precisa de nada,
você precisa de precisar,
e precisa sempre mais de mais.

Nunca estará satisfeito.

A menos que faça o relógio
girar no sentido anti-horário,
e seja seu próprio proprietário.

Eu arriscaria.

“A vida é sua. Governe-a”.

LANÇAMENTO DIA 5 DE OUTUBRO: 
https://www.facebook.com/events/1540565742840600/

15.8.14

DIÁRIO DE UMA EXTERMINADORA DE CÃES

hoje, andando pela rua,
chutei um cachorro morto.
mas foi apenas para me certificar
de que ele estava realmente
morto.

na ausência de latidos,
segui em frente
esboçando um sorriso:
- “menos um cão assassino no mundo!”

os cães são realmente cruéis
quando se trata de gatos.

um dia,
percebi que precisava fazer
alguma coisa boa
pelo mundo.
abracei a causa dos felinos.
os gatinhos só querem ser livres,
e são muito oprimidos.

quando vi um gato dilacerar
uma barata
achei justo.
e vi também
muito senso de justiça
em seu implacável extermínio
aos ratos.
são bichos nojentos,
que empesteiam o mundo!

mas havia ainda um empecilho:
os cães.
os gatos não podem com os cães.
os gatos precisam de mim
para lutar contra os cães.
pobres gatos!

me armei de porrete
e saí afundando os crânios
de todos os cães
que encontrava pelo caminho.

não gosto dessas cabeças caninas
jorrando sangue.
não tenho em mim um prazer assassino.
apenas descobri que os cães
representam o mal.
e para ser boa, estar do lado do bem,
é preciso exterminá-los,
só isso.

me tornei uma pessoa melhor.

se ouço um latido,
já estou lá a postos,
de porrete,
barra de ferro,
pronta para enfrentar
o inimigo.

alguns cães abanam os rabos
pensando que me enganam...
eu sei que a maldade está lá.

ser uma exterminadora de cães
é um bom modo de
mudar o mundo.

estou em paz
ouvindo o canto de um
passarinho.

mas..

o canto parou de repente.

o que estou fazendo
com esse lindo passarinho
entre os dentes?

7.8.14

DOS PROTESTOS PARA AS PÁGINAS: O LIVRO “AS GUERRAS NOS PORTA-RETRATOS” REÚNE POEMAS E FOTOS DAS RUAS

No dia 9 de agosto, data que marca um ano da ocupação da Câmara Municipal do Rio de Janeiro – Ocupa Câmara Rio –, será realizada a festa de lançamento do livro “As guerras nos porta-retratos”, a partir das 20 horas, no Estúdio Hanói.

O livro reúne poemas e fotografias realizados no contexto das manifestações que eclodiram no Brasil a partir de junho de 2013, em que a autora se oculta e se mascara, e revela, ao lado de seus poemas, as escrituras anônimas das ruas nos mais variados suportes (faixas, cartazes, escudos, adesivos, lambe-lambes, carimbos, projeções, pichações, grafite e estêncil). Os dois primeiros capítulos trazem trabalhos das séries “Vandalismo Poético” e “Ocupa Coração”. No último capítulo, poemas da fase anterior às manifestações se intercalam a escrituras de outros períodos históricos, como as dos muros de Paris em maio de 68, sob o título “Velhas fotos amareladas”.

O evento de lançamento, intitulado “Festa das Organizações Amorosas”, também celebrará as lutas políticas que tomaram as ruas no último ano, reunindo ativistas, artistas, advogados, socorristas e midialivristas de diversos coletivos ou independentes; enfim, pessoas que ocuparam as ruas criando uma rede de solidariedade e resistência que se estende até o atual momento, com a luta contra a criminalização dos movimentos populares, perseguições políticas e prisões de manifestantes, acusados de “formação de quadrilha”. Como resposta poética, forma-se então uma “organização amorosa”.

Na programação, haverá apresentações de poesia, performance, música e projeções, com palco aberto para diversas intervenções artísticas. A autora apresentará performances em parceria com as artistas Flávia Cortez e Aline Vargas. Haverá shows de Arnaldo Brandão e Claudia Sette, poemas de Tavinho Paes, Dudu Pererê, Juliana Hollanda, Marcela Giannini, e muitos mais. Entre as projeções, fotos de Marcelo Valle, vídeos de Rafucko, e a exibição de um documentário sobre o Ocupa Câmara Rio, realizado por Ciro Oiticica.

O livro integra o projeto de pesquisa "Vandalismo Poético e outras Artes Marciais", em desenvolvimento no curso de Doutorado em Literatura, Cultura e Contemporaneidade da PUC-Rio, em que a autora aborda relações entre arte e política, a partir dos protestos de junho de 2013 até as manifestações contra a Copa do Mundo no Brasil, em junho de 2014.

Não por acaso, o nome da autora não foi até agora revelado. A estratégia de ocultamento é proposta do trabalho, com o desenvolvimento da ideia de “mascaramento do autor”. A autora poderia dizer “Anota aí: eu sou ninguém”, como uma militante do Movimento Passe Livre de São Paulo a um jornalista que a interrogava sobre sua identidade no auge dos protestos de junho; ou afirmar “Meu nome é Amarildo”, como os ocupantes da Câmara Municipal do Rio de Janeiro a todos os repórteres, ou ainda cobrir o rosto com uma camisa preta como os praticantes da tática Black Bloc. Como afirmou Peter Pál Pelbart, mencionando Agamben, em artigo sobre as manifestações, “os poderes não sabem o que fazer com a ‘singularidade qualquer’”.

Poeta e performer, mestre em Artes Visuais pela UFRJ, tendo passado pelas graduações de Cinema-UFF e Artes Cênicas-UNIRIO, a autora integra o grupo Madame Kaos, e tem no currículo inúmeras apresentações artísticas, e outros três livros produzidos de forma independente. Atualmente, atende pelo nome de Bakunin.

O Estúdio Hanói fica na Rua Paulo Barreto, nº 16, sobrado – Botafogo.  A entrada é franca e o bar não aceita cartão. O livro custa R$20,00.

Link para evento no Facebook: https://www.facebook.com/events/752979524760710/

28.4.14

OCUPACOPA

um grito de dor
um grito de gol
uns levam bala
uns jogam bola
entre Ocupa
e a Copa
já sabemos chutar
as bombas de volta.

o Brasil está de negro
está de luto
está de luta
estádio é rua.

entre futebol
e pelada
- nua -

“é uma casa muito engraçada
tem copa, e não tem mais nada”
- não é assim aquela música?

casas marcadas
- remoções.

caras marcadas
- prisões.

muito engraçada
muito engraçada
(toda gargalhada é feroz.)

- vai ter palhaçada?
- sim senhor!
- vai ter marmelada?
- sim senhor!
(só não vai ter pão.)


- vai ter Copa?
algumas crianças moram
em seus desenhos
- casa engraçada sem teto sem chão -
em seus desenhos as casas são coloridas
têm portas janelas e chaminés
acima de tudo, o sol sorri

algumas crianças moram no sorriso do sol
- as nuvens carregadas de chuva e chumbo -
(o sol das crianças jamais deveria deixar de sorrir)

uma criança teria desenhado uma casa com pernas
cruzando o jardim
e as flores com muito espinho
e o sol muito vermelho
e a casa cansada só queria sentar numa pedra
pra descansar
mas pedra não há no caminho

algumas crianças moram nas suas pernas
dormem na chuva e chumbo
e sonham com seus desenhos

21.4.14

NÃO É UM POEMA

tal Buñuel
deslizar a navalha no globo ocular

você já fechou os olhos
para alguma cena de cinema?

o desejo da cegueira
a navalha no globo ocular

você já fechou os olhos
para alguma cena?

muitas imagens são duras
de enxergar

espetar os olhos
e mergulhar na escuridão
não foi autopunição
- o alívio de não ver -
Édipo soube a verdade
cegar-se foi seu presente
- de grego -
presente trágico de alívio rápido

você já fechou os olhos?

em Laranja Mecânica
Kubrick projetou garras de ferro
para manter os olhos sempre abertos
e os olhos se debatem
em desespero
tente fechá-los agora? ele ri.

você já se fechou?
- o alívio de olhar o umbigo -

a cor da cegueira é negra
como a escuridão
que embala nosso sono?
ou será a cegueira branca,
luz fria, refletor no olho,
incômodo?

Saramago cegou
a humanidade inteira
para dar a ver
o desumano no humano

há alívio em não ver?

desesperos táteis
ainda são
desesperos

o som do carro derrapando
no atropelamento
a viscosidade do sangue
na calçada


não era cinema.

16.2.14

APRESENTAÇÃO ABERTA AO PÚBLICO

A minha Dissertação de Mestrado, "Meu corpo como livro", resultado de pesquisa artística que venho realizando desde 2009 em performances e na composição de livros, e que a partir de 2012 passou a ser desenvolvida na Pós-Graduação em Artes Visuais da UFRJ, será defendida nesta terça, com apresentação de performance artística aberta ao público. Segue o flyer:

12.2.14

SOBRE O ROJÃO NOSSO DE CADA DIA

a Rede Globo explodiu um rojão na minha cabeça
há muitos anos, a Globo tem causado mortes cerebrais
por atrofia de pensamento
eu me apalpo e percebo que ainda não morri
olho muito abismada para as coisas do mundo
eu penso.
quem acendeu aquele rojão?
quem atirou um artefato explosivo a esmo
no meio da multidão?
quem REALMENTE causou a morte do cinegrafista
e de tantos outros cujas vidas tinham menos valor
para a cobertura da Rede Globo?
o Estado acendeu o rojão;
Cabral, Eduardo Paes e suas polícias.
a Globo, junto a outras mídias,
deu cobertura.
há imagens que mostram claramente
a Globo passando o rojão
para as mãos de Sérgio Cabral.
não se enganem,
estão todos com as mãos sujas de sangue!
há mesmo quem diga que aquilo foi bomba de efeito moral
(a explosão é igual)
já não importa para onde vai levar a investigação:
a Globo já condenou,
não dois moleques inconsequentes,
não o Black Bloc,
condenou toda e qualquer forma de
MANIFESTAÇÃO.
taí o rojão, segura!
agora lança no deputado da oposição!
agora lança na Sininho, no Peter Pan,
e em todos os meninos perdidos da Terra do Nunca,
que cometeram o terrível crime de não crescer!
aproveita e lança também no Batman!
mas deixa o Coringa, o Pinguim e o Capitão Gancho
resguardados.
como cantava Elis: “Eles venceram,
e o sinal está fechado pra nós, que somos jovens”
a Globo explodiu um rojão na minha cabeça
e eu ainda estou catando os pedaços do meu cérebro
espalhados pelo chão; ainda estou viva.
um dia conseguiremos pensar
sobre tudo isso
se o pensamento, enfim,
não for também proibido.


#vandalismopoético 

1.2.14

#ocupacoração

Às vezes, o meu coração desocupado fica ali prostrado, estourando plástico bolha durante o dia inteiro. O coração desocupado, às vezes, se enche de pensamentos impróprios. Se pergunta, por exemplo, por onde andará aquele ocupante que saiu vandalizando tudo? E se lembra com certa saudade de cada cena de vandalismo, o fogo todo, as explosões, tudo lindo! E se esquece de lembrar que aquilo tudo devia doer. Talvez tenha doído um bocado. Mas um coração desocupado já não sente nada. Apenas fica ali, estourando plástico bolha, sem mais nem porquê. Sequer se dá ao trabalho de pensar que o plástico bolha não nasceu pra gente estourar. O plástico bolha foi feito para proteger objetos frágeis do contato com superfícies duras, para impedir quebras ou rachaduras. O coração devia se envolver inteiro em plástico bolha, quilômetros e quilômetros de plástico bolha para cada coração. E então, um coração desocupado só seria penetrado por outro coração desocupado, que viesse assim de mansinho, distraído, quem sem querer, estourando as bolinhas uma a uma com delicadeza nas mãos. É tudo muito delicado no contato de um coração com outro coração, são objetos frágeis. Há coisas que não podem ser vandalizadas. Ploct, ploct, me diz o plástico bolha. Devo considerar isso. É sempre bom ouvir um conselho de amigo.