28.2.10

RASURAS

quem passa borracha no peito?
me ensina a apagar
quem passa borracha, liquid paper
me ensina!
quem consegue escrever outra coisa por cima?
eu rabisco, puxo uma seta, escrevo do lado, em cima, embaixo...
trago no peito um coração rasurado
sem ter onde passar a limpo
sem poder jogar fora o rascunho
aí acaba que ninguém entende esses meus rabiscos
e eu não posso reclamar compreensão
não posso reclamar
eu tenho um coração ilegível

24.2.10

DAS COISAS MUDAS

até os anjos conversam comigo
sim, os anjos falam comigo!
fantasmas conversam comigo
cães vira-latas conversam comigo
um poste fala comigo
me dá bons conselhos
me abraça calorosamente no meio da madrugada
e me dá conselhos de amigo
todos os postes falam comigo
mesmo os que só me cumprimentam de passagem
um copo de cerveja fala comigo
antes que eu o beba, ele fala comigo
o teto do quarto fala comigo
as estrelas me piscam oi a todo momento
todo o mundo fala comigo
as buzinas dos carros, os semáforos
todos me dizem algo
os móveis, os prédios, as antenas e os pára-raios
tudo se faz som nos meus ouvidos
então prefiro não comentar esse silêncio
não sei falar sobre coisas que eu não entendo
apenas sinto a dor das coisas mudas
que permanecem mudas
e que não vão mudar

23.2.10

NO FUNDO DOS OLHOS

no fundo dos olhos
uma tristeza
sempre a mesma
sem explicação
sem exclamações
fria como deve ser uma tristeza
parada no fundo dos olhos
a espreitar o mundo
um pouco recuada
mas pronta a saltar em cima de tudo
como um felino
a espreitar a presa


p/ Bruno Bandido (link ao lado)
“nada de lamento, apenas aquela tristeza que um cara que se sente só durante todo o tempo carrega escondida no fundo dos olhos”

22.2.10

ENTRE SEM BATER

juju sabe:

ter a chave
e não saber que porta ela abre
ou ter a porta aberta
e ninguém pra passar por ela
são dores da mesma natureza
atravessar a parede
é uma dor incomparável
atravessar a parede
é para poucos

ps. uma pequena homenagem ao livro "Entre sem bater" da minha amiga Juju Hollanda, que é todo um atravessar de paredes constante...



A QUEDA

na hora da queda
nenhuma asa delta
nenhum parapeinte
nenhum instrutor de vôo
nenhum trem de pouso

na hora da queda
as asas se soltaram do corpo

na hora da queda
apenas asfalto quente

depois da queda
um mundo de gente
querendo saber por quê

antes da queda
ninguém
nenhuma sensação térmica
nada
batendo dentro do peito,
só asas
coisas agitadas
e coisas quebradas

mas isso foi antes da queda...

19.2.10

SOLIDÃO

p/ Tavinho Paes e Juju Hollanda

solidão não é salto do parapeito
nem é estilete
não é desespero

a solidão é calma,
silenciosa,
discreta,
não deixa marcas

a solidão pode ser apenas
uma porta aberta
por onde ninguém passa

18.2.10

Essas coisas

Poucas coisas têm me deixado feliz. Realmente feliz. E geralmente são as mais simples. Encher a cara e dançar nos blocos de carnaval é só falsa euforia. O que eu gosto é depois de tudo dar um mergulho no mar do Arpoador e caminhar pelas pedras e ficar olhando a cidade iluminada numa noite que de lá de cima parece tão calma. Uma flor de plástico. Uns chinelos largados. Uma água de coco na manhã de ressaca. Dividir essas coisas. Um quê de carinho, um quê de cuidado. Aquele olhar silencioso no momento que precede o beijo. A minha mão nos cabelos dele e o jeito que ele pega na minha cintura. Esses arrepios. Coisas simples como tomar uma água gelada nesse calor de matar que tem feito no Rio. Longos banhos gelados. Um ventilador. Um prato de arroz com feijão. Essas coisas simples têm me dado uma enorme satisfação. Ver o dia nascer fumando um cigarro na varanda enquanto todos dormem. Ele no meu colchão. Fumar os cigarros dele porque ele comprou a marca que eu gosto, porque ele sabe que eu gosto. Essas coisas têm me feito tão bem. Sentar com ele na mureta do Hotel Glória sem saber pra onde ir. Ficar ali, porque a gente tá cansado. Só ficar um tempo ali, alheios ao resto do mundo. Essas coisas simples que não se planejam. A gente nunca liga pra alguém e diz: “Vamos sentar juntos na mureta do Hotel Glória esta noite?” As pessoas têm necessidade de fazer coisas. Não precisar fazer nada é o que tem me deixado realmente feliz. Não precisar falar nada, e ainda assim entender o que se diz. Ainda tem umas coisas dele na minha bolsa... É o isqueiro dele que está acendendo os meus cigarros. Essas coisas.

11.2.10

O dia em que Rocky desistiu da luta


Não, não, não é nada disso. Aquilo que eu falei, olha, esquece. Esquece esse meu ar decidido. A palavra firme fincada na minha boca. Esquece tudo isso. Todo o sinal e demonstração de decisão e força. Eu choro, sabia? Eu também faço essas coisas... Não, não é todo dia. Tem dia que eu até sei o que eu tô fazendo. Mas geralmente eu não sei... Se eu faço com ar firme e decidido foi porque aprendi assim. Sei lá, a gente tem que ser forte. É que nem no teatro, tem que ter verdade. Então eu vivo com verdade uma coisa que é tudo mentira, esse meu personagem. Eu sou uma mulher livre que faz o que quer. O problema é que nem sempre eu sei o que eu quero... mas e daí? Vou ficar confusa, histérica e deprimida? Virar "mulherzinha"? Ficar abrindo a guarda pra neguinho passar por cima? Aqui ó! Só que essa força toda tem me enfraquecido um bocado... porque eu não caio no ringue e só tomo mais e mais porrada. Eu vou sair que nem o Rocky da luta todo estropiado. É assim que eu fico, com a cara arrebentada. Chorando convulsiva, soluçando que nem criança. É porque eu agüento a porrada. Eu choro de ser forte, não é de fraca. Mas me sinto uma criança perdida dos pais no meio de uma multidão apavorante. Sozinha sem o endereço de casa. Balbuciando entre lágrimas qualquer coisa ininteligível que não ajuda ninguém a me ajudar. Mas quem iria me ajudar? Quem me olha não vê a criança. Vê o Rocky. O King Kong. O Rambo. Sei lá. Uma coisa grande, forte e invencível. Difícil de derrubar... E que ironia...! Qualquer rasteirinha me põe no chão. Eu sou um bebezinho indefeso na carcaça de um lutador, tomando porrada num cercadinho que pode ser ringue ou berço. Chorando a noite inteira... silenciosamente. Se eu tô te falando isso é porque quero que você saiba com quem tá lidando. Não me derruba do berço, porra! Me embala no colo de vez em quando... Me conta umas histórias bonitas pra eu dormir. Como aquela da princesinha que a minha mãe me contava. A princesinha sempre tinha o meu nome. Era um carinho criar a história de uma princesinha com o meu nome. Me faz um carinho de vez em quando... Eu cuspo fogo, mas eu não sou o dragão, eu sou a princesinha, porra! Não desembainha a espada pra mim. Você vai me machucar. Caramba, eu tenho toda essa armadura, mas eu me machuco muito. Aí depois é um trabalhão fazer os curativos e tudo mais. E ficam aquelas cicatrizes feias. Isso numa princesinha linda e esvoaçante não cai bem. Então pára de puxar meus cabelos, vem me fazer umas tranças e fica tudo bem, ok? Eu sei que você não tinha sacado nada disso. Por isso eu te contei. Agora o Rocky vai desistir da luta sem maiores explicações, deixar o público estupefato, e ir pra casa tomar um bom banho e dormir sossegado, aguardando alguém que venha cuidar com carinho dos seus machucados.
tem umas coisas meio bagunçadas por aqui
umas roupas no cabideiro
uns papéis na mesa do computador
e - o que é pior ainda - sem cabideiro ou mesa pra amparar
minha vida
umas coisas que eu não tenho saco pra arrumar...

8.2.10

Tenho me esforçado pra ficar feliz. Afinal, já é carnaval no Rio. A felicidade nessa época é quase uma obrigação, então eu me sinto empurrada pra rua e vou. Então eu me esforço para estar feliz. Me enfio no meio da loucura eufórica dos blocos e tento sorrir. Afinal, tenho encontrado uma porrada de amigos muito queridos por aí e eu sei que todos se esforçam, e alguns até mesmo conseguem - muitos parecem. Então tenho me esforçado bastante pra ficar feliz. Eu gosto de ver meus amigos bêbados batucando no bar. Isso me dá quase uma paz. A sensação de que tudo está certo, está como deveria. É quase uma paz. Mas felicidade, mesmo, eu tenho só me esforçado em vão... Acho que ninguém percebe então eu não corto a onda dos meus amigos e isso já é um bom sinal. Mas esse esforço me cansa profundamente. Me cansa tão profundamente...! Cansa meu fígado de tanta cerveja, meus olhos de estarem abertos, meus músculos de estarem em movimento, cansa minha alma esfarrapada vagando pelas ruas atrás de alguma migalha de satisfação - que ainda não é felicidade. Me cansa tão profundamente que eu tenho vontade de dar uns tiros em quem me diz "bom dia"! Assim, sem mais... Quem disse que o dia está bom?, não me enche! Pow Pow. Mas por inércia, eu sigo me esforçando. É por inércia que as pessoas são felizes. Contrariar naturalmente o que se espera de nós dá mais trabalho que se esforçar pra corresponder. Então eu sigo me esforçando. Por preguiça. Por pura preguiça. Tô cansada. Muito cansada. De tudo. Que alguém me diz "bom dia", e eu até retribuo. Repito "bom dia" como um papagaio, sem nenhuma convicção. E isso me deprime profundamente. Esforço em vão... Tudo em vão! Não adianta. O dia não é bom. Eu ando irremediavelmente triste.

2.2.10

SEM JEITO

eu quero sussurrar e sai um berro
quero acariciar e cerro o punho
na hora do silêncio eu falo muito
e quando é pra falar, engulo a seco
era pra me esquivar, e eu levo o soco
na hora de xingar, rebenta o choro
se era pra ficar, eu fui embora
e quando era pra ir, eu me demoro
eu quero me esconder e me exponho
eu perco o jogo até se ele tá ganho
(não sei mais decifrar quem tá blefando)
acho que eu perdi o jeito
ando metendo os pés pelas mãos
nem os cães vira-latas querem mais papo comigo
até eles andam me evitando... (sentem o cheiro do perigo)
acho que eu perdi o faro
tô me jogando nas furadas
lugar errado, hora errada
tô vagando que nem um cão vira-lata
não, não, eles sabem se virar nas ruas!
tô vagando que nem um filhote de pombo com a asa quebrada
pombo não é passarinho, não é bonitinho, ninguém quer levar pra casa
então eu tô assim, triste e desengonçada
envergonhada dessa falta de jeito
querendo meter a cabeça num buraco
e dando cabeçada na parede
aturdida, desorientada
meio satélite fora de órbita
meio peixe fora d’água
sem saber se é hora de falar
ou se é melhor ficar calada
e eu já saquei que eu vou escolher a opção errada