28.8.12

vale-brinde

ninguém nunca me disse
que a felicidade não vinha
em um vale-brinde
dos pacotinhos de biscoitos da Elma Chips
- crec crec crec e nada -
e que a probabilidade muito mas muito maior
era da gente ser assim meio triste
esse jeito de andar distraído
com bilhetes premiados nos bolsos
sem conferir os números
da loteria

nunca mais, não durmo

não durmo mais, nunca mais
já tingi um ray-ban de olheiras na cara
tenho o meu estoque de cigarros
para as madrugadas, todas as madrugadas
as manhãs, tardes, noites
e novamente as madrugadas
baixando músicas que nunca serão
a canção de ninar que eu preciso
Cazuza e Dylan arranham meus sorrisos
meus ouvidos, quis dizer meus ouvidos
vozes dissonantes no meu peito
lendo livros que me atiram palavras como tapas
não há tom de colo
nenhum som de passos cruzando a porta
e eu não fui pra rua, meu bem
não bebi essa noite nem deixei o carro
estacionado na boca de um poste
não me encolhi me escondi
não dormi embaixo da ponte
não causei nenhum estrago
não tropecei não beijei o meio-fio
não corri não gritei nem quis ser inconveniente
apenas sentei e esperei
pacientemente
e eu nunca mais
não durmo
desejando ser devorada
por algum dragão noturno

7.8.12

brrrrrrrrrrrrrrrrrr...

Essas reformas constantes de quem tá sempre pondo a casa abaixo porque nunca tá suficientemente bom. Derrubamos as paredes com os pés e aí começa tudo de novo. Britadeiras, pequenas implosões, guindastes, guinchos, reboco, massa fumaça tijolo. Nunca tá bom. Aquela casa de madeira construída na árvore dos nossos sonhos de infância, eu perdi o endereço, as chaves, as escadas, a trilha de migalhas, todas as migalhas que me arranquei pra deixar no caminho, pra não me perder, meu corpo esfacelado pelo chão em algum lugar que eu não sei, por aí... pedaços dos meus dedos que eu tive o cuidado de cortar em pequenas partes iguais com um belo alicate, todos os fios dos meus cabelos, as rótulas dos joelhos, os cotovelos... tudo perdido por aí numa trilha... devorado por algum bicho voraz o tempo. Eu entretida demais nas reformas constantes de todas as casas novas. Trocando os móveis de lugar sem parar. Essa mesa vai prali onde tá o sofá, esse jarro do lado da janela, a janela embaixo do tampo de vidro da mesinha acho que vai ficar bom; duas portas no teto talvez, ou uma em cima da cama, a cama ali do lado do fogão de aquecimento automático, eu durmo na geladeira acho que vai ficar bom. E por aí tudo de novo e sempre recomeça. E as britadeiras... britadeiras em cima da cama, no computador, no sofá e na televisão, britadeiras em todos os livros das prateleiras músicas roupas jarros de planta mesinha de cabeceira. Coração; poeira, desarrumação. Britadeiras, britadeiras, britadeiras... – e não é tanto a dor, mas o som.
“(...) América, essa palavra, o som é o som da minha infelicidade, a articulação da minha velha e estúpida tristeza – minha felicidade não se chama América, ela tem um nome secreto menor mais pessoal mais risonho – a América está sendo procurada pela polícia, perseguida em Kentucky e em Ohio, dormindo com os ratos pelos currais e uivando os shingles metálicos que revestem os silos escuros dos fugitivos, é a figura de um machado na True Detective Magazine, é a noite impessoal nos cruzamentos e entroncamentos onde todo mundo olha para os dois lados, para os quatro lados, ninguém dá a mínima – a América é onde você não pode nem chorar por você mesmo – É onde os gregos dão um duro danado para serem aceitos e às vezes eles são de Malta ou do Chipre – a América é o que pôs na alma de Cody Pomeray o ônus e o estigma – que na forma de um policial à paisana cagou ele a pau numa salinha dos fundos até ele falar sobre um troço que já nem é mais importante – a América (MÁFIA DE JOVENS SEXO DROGAS CARROS!!) é também o neon vermelho e as coxas no motel barato – É onde à noite os bêbados trôpegos começam a aparecer como baratas quando os bares fecham – É onde as pessoas, as pessoas, as pessoas choram e mordiscam os lábios pelos bares e nas camas solitárias e se masturbam de um milhão de jeitos diferentes em tudo que é cantinho escuro – Tem estradas malignas por trás de tanques de gasolina onde cães assassinos rosnam atrás das cercas de tela e os carros da radiopatrulha de repente surgem como carros de fugitivos mas de um crime mais secreto, mais sinistro do que as palavras conseguem descrever – É onde Cody Pomeray aprendeu que as pessoas não são boas, que elas querem ser más – onde aprendeu que elas querem fugir e brigar, e que em vez de fazer amor elas rosnam – a América transformou o rosto de um jovem garoto em ossos e com tinta escura pintou olheiras nele, fez das maçãs do rosto uma pasta branquicenta e entalhou vincos naquela fronte marmórea e transformou a esperança cheia de vida na sabedoria silenciosa de lábios grossos que não dizem nada, nem para si mesmo no meio da maldita noite – o tilintar dos pires na triste triste noite – O trabalho gorgolejante de alguém na pia de uma lanchonete (na aridez vazia do Colorado a troco de nada) – Ah e ninguém se importa mas o coração no NOSSO peito vai reaparecer quando os caixeiros-viajantes morrerem todos. A América é uma latrina solitária. (...)”
JACK KEROUAC, em VISÕES DE CODY