24.7.12

flores para os mortos

Já faz um tempo que o Rio de Janeiro me parece um grande cemitério, e os cadáveres vagam por aí exibindo suas arcadas dentárias - ossaturas sem bocas sustentando um eterno sorriso. Um grande sorriso sem fim, por toda parte, e é apenas a condição de não ter carne pra recobrir os ossos; não tem nada a ver com felicidade. Ainda procuro algum resquício de vida em alguma esquina. Noites bêbadas de desamparo vagando desesperadamente pelas ruas sem saber para onde ir, até que o sol anuncie o fim de linha e eu me enterre numa cama qualquer, que geralmente não é a minha. Há uns amigos loucos que também procuram, sem cessar. Às vezes a gente se faz companhia, e é como se trouxessem flores aos nossos túmulos solitários. A visita de quem não esquece, no grande cemitério vazio. Aqui e ali, espasmos. Pequenas contrações musculares. Pulsaçõezinhas ínfimas em meio à grande paralisia. A gente não desiste. Mete o pé em algumas portas. Nas placas de proibição. O carro na contramão, sem medo. Dizem que Deus protege os loucos e os bêbados. Se há Deus em qualquer parte, espero que isso seja verdade.


ps. esse desenho aqui é do André Kitagawa.

20.7.12

Poema vagabundo para um bluesman qualquer


pego a estrada com vc
e cruzo tudo q é fronteira a pé
sob um baita temporal
usando um jornal de guarda-chuva
vc pode fazer as curvas mais radicais
com o meu carro
e até jogá-lo numa vala
- ele já tá pago -
a gente dá risada e larga ele lá
e sai nadando
e vai parar num mar do Caribe ou sei lá
qualquer lugar
q tenha um bom uísque
ou a pior bebida no pior dos bares
eu não faço mais questão de cama
a grana acabou, meu bem
a gente dorme na rua na grama no banco da praça
vc me acorda com sexo e blues, e tá bom
- bom dia, baby! -
eu te preparo o café
se tiver onde coar
e a gente fica lá
quarando ao sol
e enche a cara e briga por qualquer bobagem
e eu vou dar pro seu melhor a amigo
- a gente já sabia que ia acontecer -
eu sou uma mulher carente
- todas são.
vc vai querer se livrar de mim
eu vou querer te matar
- a gente sabia q ia ser assim –
então a gente bebe mais uma no próximo bar
e segue viagem...
vc esquece repentinamente
as contas pra pagar
se acumulando embaixo da sua porta
eu esqueço
q em algum lugar eu tinha uma porta
as paredes foram feitas
pra gente atravessar, cê sabe
e a gente sai derrubando tijolos
chutando pedras
desmoronando o sorriso da cara dos bestas
perguntando, onde há
afinal, onde há gente no mundo?
seres humanos nos atravessam
e a gente pára pra escutar a melodia
de um cão vagabundo
o pior dos cães nos interessa
e eu tento escrever uma coisa bonita
e sai um poema apressado
uns versos de rodoviária
rabiscados no banheiro
vc nem liga, e tá tudo certo
e eu fico inventando essa coisa
de dançar
sob o céu do deserto...
mas isso é tudo besteira
é q eu sou uma mulher carente, cê sabe
e eu já bebi demais essa noite
e só tenho pra conversar
esse livro do Kerouac
meus planos de viagem
e uma carta pela metade

ps.: deviam dizer q é proibido reler “On the road”
após certa idade...

19.7.12

Os cães vão latir...

Dublé

apagando incêndios com a ponta do cigarro
caminho sobre ovos ou cacos de vidro
já não importa se eu me atiro pela janela
de um carro em alta velocidade
eu sou aquele tipo de dublé
que sempre vai saber o modo certo
de se esborrachar
e um jeito discreto de cair fora
nunca meu rosto no cartaz do filme
descanso com a cara num copo de vodka
e deixo o cigarro cair aceso incendiando a casa
já criei uma pele à prova de queimaduras
e ossos inquebráveis
nem ouço soar o alarme...
pode esmurrar as mesas
e bater com a cabeça na parede, baby baby
entramos no filme errado
e a sessão já está na metade
tem sempre uma porta destravada
por onde eu escapo
uma janela, um parapeito
tô na minha melhor forma
e sei de tudo sobre saltos

10.7.12

Esses caras


tem esses caras
escorados no meu ombro
tropeçando pernas, chutando pedras
alimentando com as mãos
algumas feras
eles me alimentam
pondo o dedo na ferida
pra cavar mais fundo...
– “meninos não choram num quarto de hotel
ouvindo uma balada triste...”
– eu nunca soube nada de meninos –
mas tem esses caras
e essas músicas...
essas músicas repetidas
arranhando o peito...
um poema na ponta
do isqueiro
– sei alguma coisa sobre isso –
a gente não vai virar o disco
– “a gente aguenta a próxima dose, baby.”
a gente calçou o coração
com luvas de boxe
e os nossos pés
de precipícios

Bichos aquáticos


em vez de correr atrás dos ratos
que sobem dos ralos nas chuvas
eu devia me proteger nas marquises, sei disso.
tenho andando com os sapatos molhados
se eu virar a bota de cabeça pra baixo
posso encher um copo d’água, eu sei.
tem sempre uma nuvem sobre a minha cabeça
ou sou eu que persigo a nuvem? – sei lá...
o fato é que meu carro tá alagado
e a correnteza já começa a levá-lo
e eu subi no capô.
fico ali sentada
fazendo uns versos...
quem precisa de resgate?
eu não dei o telefonema.
tenho o direito de ficar calada,
sei coisas sobre isso.
e os policiais vêm me fazer perguntas
e os padres me fazem perguntas
e os professores perguntam
e os recenseadores
os burocratas
as operadoras de telemarketing
minha mãe pergunta demais, coitada.
e eu só tô a fim de ficar
boiando em cima do carro
com os sapatos alagados.
(e os ratos a essa altura já viraram
bichos aquáticos
– mas quem se importa?
ninguém sabe nada sobre os ratos
e ninguém os incomoda.)

Looney Tunes


Eu pareço um desenho animado. Levo uma rajada de tiros e não cambaleio e não caio, só bebo um copo d’água e fico lá vazando pelos buracos da barriga. O trator passa por cima de mim, e eu fiozinho de papel assopro o dedão e me encho de volta. Não adianta, baby. Pode vir com seus explosivos. Desenhos animados nunca morrem.

2.7.12

carta do porão

para Chacal e Tavinho Paes

Desse porão escuro, ouço latidos. Não sei se de fora ou de dentro. Os cães estão por toda parte. Displicentes, filando restos de banquete. Ou atacando ferozmente. Eu desci para o porão quando os cães invadiram a casa. Os cães ladram. Eles sentam à minha mesa para jantar com a tevê ligada, dormem na minha cama, dirigem meu carro. Eu vim para esse canil escuro debaixo da sala. Ouço latidos e a tevê ligada. Os cães devem vestir as minhas roupas, ou destroçá-las com os dentes, tanto faz. Passei a me vestir de palavras. Palavras escorrem da umidade das paredes. Há muitas infiltrações nos porões das casas. Os cães devem esquecer as torneiras ligadas. Há muitas goteiras. Passei a encher baldes de palavras, para jogá-las no ralo. Agora os cães deram pra fumar meus cigarros. Já estou por aqui com eles. Não gosto que bebam do meu copo, já disse. Não são cães adestrados. Aprendi a rosnar com eles e já estou com os caninos avantajados. “Cuidado, cão feroz” – pregaram na minha testa. Nunca entendi por que alguns cães abanam os rabos e fazem festa, e têm latidos finos e pequeno porte. Pelo tom do latido eu posso adivinhar o tamanho do poeta. Sempre preferi os vira-latas aos de pedigree, e dez mil vezes os de caça. Agora no porão faz frio e eu não sei se é noite ou dia. Os cães nunca dormem. Os latidos não param. Já estou andando sobre quatro patas e sei das coisas pelo faro.

Ps. Texto de abertura do livro "Todos esses cães latindo no peito"; fotos: Vitor Vogel