5.1.06

Um conto de Vinícius Piedade

O Vinícius eu conheci como um pirata inconformado desbravando mares no palco do Teatro da UFF, no solo Carta de um pirata, com coordenação artísitca da fantástica Denise Stoklos. Mas ali, fantástico era ele, o pirata, o Vinícius, o ator. Tempos depois, recebo um conto pela mala direta da peça: Letícia. "Ah, se eu me chamasse Letícia!..." foi o comentário que deu início a nossa amizade. Depois, eu li e reli seu livro de contos, Trabalhadores de domingo. E li seus contos ainda não publicados. E revi sua peça ainda mais duas vezes. E verei ainda muitas outras peças. E lerei outros tantos contos. Por ora, publico seu conto que me fez suspirar!...

LETÍCIA

Estava indo pra faculdade um pouco mais cedo do que o comum porque tinha uma reunião importante no Centro Acadêmico. Por falar nisso, um momento fundamental para o Centro Acadêmico. Estávamos organizando uma assembléia que reuniria alunos de todos os cursos, veja bem, estudante de economia lado a lado com estudante de teatro conversando com o de medicina paquerando a aluna de história discursando para a aluna de geografia e etc e tal. Claro, somos todos jovens, vemos praticamente os mesmos filmes e ouvimos as mesmas músicas, mudamos os mesmos canais na TV e pegamos o mesmo metrô, nadamos no mesmo mar e choramos a mesma morte (quando um ícone da juventude morre); mas o fato de um estudar no prédio de arquitetura e outro no de sociologia faz com que esses nunca nem se falem. E isso não pode acontecer nesse momento em que precisamos dos jovens unidos pra mudarmos algumas coisas nessa faculdade tão bagunçada. O reitor não faz nada e a Universidade está evidentemente em decadência. Isso todos sabem, dos mais engajados aos mais alienados.

Pois nessa reunião, eu seria o facilitador, ou seja, a pessoa que coordena e tenta fazer esse encontro não ser em vão.

Rio de Janeiro. Copacabana. Eu estava quase atrasado, tanto que comia uvas pelo caminho. No ponto de ônibus, olhei um pedaço de mar ao longe. Verde, verde, verde. Senti uma certa tensão no pescoço, então mexi minha cabeça pra todos os lados pra ver se relaxava. Não relaxei. Guardei meus livros na mochila e tirei do bolso um rascunho do que falaria pra abrir a reunião. Estava preocupado. Li um trecho em voz alta e de rabo de olho vi que uma senhora me olhou. O ponto de ônibus estava quase vazio, essa senhora, um cara de gravata e bigode (e pasta e sapato engraxadíssimo), um cara com uma caixa de chocolates (entrava em cada ônibus que parava, mas sempre que o motorista percebia que ele ia vender seus chocolates, faziam-no descer), uma moça grávida com saia de crente (com seu longo cabelo de crente, sua cara de crente e naturalmente sua pequena bíblia na mão) e uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça. Uma moça... Não consegui tirar os olhos dessa moça: essa moça me deixou fora de mim!

Ela estava um pouco perto, três metros à frente, e suas formas, sua carne, suas roupas, seu jeito de ficar parada, seu jeito de respirar, de ser e de estar me deixou estático. Quis ver desesperadamente seu rosto, seus olhos (olhar), seu nariz (inspirando), sua boca (molhada pela sua saliva), seu queixo (com ou sem furinho), precisava olhar aquele rosto. Meu pescoço ficou ainda mais tenso. Minhas pupilas dilataram quando ela olhou pra traz, como que pra ver aquele pedaço do mar que eu acabara de olhar, e pude ver como ela era.

Meu ônibus chegou e foi embora. Outro que também servia pra mim parou no ponto (a velha e o engravatado subiram) e também se foi. Olhei para o mar e percebi que estava confuso. Guardei meu texto no bolso de traz. O ônibus dela chegou. Ela que o fez parar esticando o braço direito com a mão e os dedos longos relaxados. Nem vi qual era o ônibus: entrei atrás precipitado, tropeçando, perdido, confuso. Ela me olhou por dois segundos e isso foi pra mim uma benção. Pagou sua passagem e se sentou em um banco de dois lugares VAZIO! Paguei a minha e voei para seu lado. Não sabia bem o que estava fazendo lá. Aliás, sabia mais do que sabia de qualquer coisa na vida, mas estava confuso. Pensei na reunião e achei melhor desligar o celular antes que começassem a me ligar pelo atraso. O celular dela tocou e ela, sem dizer alô, disse seu nome, disse Letícia. Falou qualquer coisa que não prestei atenção. Seu nome (Letícia, Letícia, Letícia) ainda reverberava na minha carne. Desligou o cel e olhou o mundo que parecia passear na janela.

Senti seu cheiro. Quis seu gosto. Senti um medo. Quis seu rosto. Senti vontade. Quis enredo. Senti vertigem. Quis sua rima.

Minha voz certamente sairia de mim gutural. Minhas pernas estavam bambas (inda bem que estava sentado!). Meu lábio inferior começou uma leve tremida (um tique nervoso de infância). Eu olhava pra frente e vi de rabo de olho que ela me olhou, não só me olhou, me secou, não só me secou, me desejou. Pelo menos assim quis ver a situação. Senti seu braço suavemente se esfregando no meu (e o quente do seu braço no meu, naquela altura, foi como banho de cachoeira pelando) e sei que foi de propósito.

Olhei em volta e vi vários passageiros. Odiei isso. Queria o ônibus vazio, só eu e ela, no máximo o motorista guiando e o cobrador dormindo. Um moleque cuspia pela janela. Um bebê chorava chupeta. Uma senhora falava mal do presidente. Um rapaz vestia o exército. Uma moça vestia uma tanga de praia modelo década passada. Um cara com cara de surfista e prancha de surfe na mão deu sinal. Uma mulher disse adeus no celular. Um casal sorriu em silêncio. Uma nuvem encobriu o sol. Sentia fome e calor. Sentia-me despenteado.

Pensei em Neruda. Pensei em levantar e lá da frente berrar Neruda olhando-a nos olhos. Ela me olhou novamente. Não, Neruda berrado não funciona. Pensei em recitar o mesmo Neruda no seu ouvido. Neruda disse que a poesia é de quem precisa, então, diria que fiz pra ela. Melhor ainda: Neruda em espanhol. Quando abri a boca pra começar, o ônibus fez uma curva e eu engoli ar. Não, Neruda não, vou de música, vou de Chico Buarque, vou cantar como que quem canta pra si mesmo, mas pra ela ouvir. Vou cantar aquela que ele diz assim com voz suave e sincera “ela desatinou...”! Mas e se eu desafinar? O mesmo medo que Chico tem me invadiu e eu entendi na carne a razão pela qual ele não faz shows...

Enquanto o ônibus nadava no asfalto quente do Rio de Janeiro de março (4 de março), eu tentava saber o que dizer pra ela que agora era minha miragem, minha bóia salva-vidas, meu compasso. Ela, meu desejo, meu tesão e meu romance. Ela, naqueles instantes que pareciam infindáveis, meu meio e meu fim. Minha utopia. Ela, minha expiração. Ela, minha inspiração. Tudo de mim pra ela. Se eu fosse pintor, um quadro. Se fosse jogador de futebol, um gol. Se fosse pirata, meu pote de ouro. Se fosse fugitivo, a minha liberdade. Se fosse dona de casa, uma torta de limão. Se fosse empresário rico, um iate. Se fosse árabe, mil camelos. Se fosse paulistano, um passeio na Paulista. Se fosse músico brega, meu maior hit. Se fosse o seu homem, um bebê. Ela, meu excesso e minha falta.

Não sabia o que lhe dizer em palavras. Olhei-a e ela sentindo-se olhada, relaxou a sobrancelha e mexeu no cabelo. Esse movimento fez com que seu cheiro inundasse o ônibus e nele me embebedei. Mais ainda: ela respirou fundo e soltou o ar como fazem os cansados, me deixando, de propósito ou não, nadar nessa extensão de seu corpo: seu hálito.

Quis expressar nos meus olhos o quanto a queria mas ela não me olhou.

Quis seus olhos pra lhe dizer que ela era minha musa do agora, tal como Ana foi de Lenine outrora, mas ela olhou a hora.

Pensei em recitar um trecho de Os Miseráveis de Victor Hugo mas achei prepotente. Pensei em ir de Camus mas achei sem nexo. Pensei em ir de Bono Vox e achei confuso. Ela me deixava confuso. Ela com seu jeito être (ser e estar em francês), me transformava em pó. Meu eu dissolvido a seu lado e ela na dela (talvez me dando mole, talvez nem sabendo da minha existência).

De repente ela me pediu licença. Olhava-me fixamente sorrindo sorriso educado. Por Alá, ela olhando pra mim sem pudores (e sorrindo)!

Seus olhos em mim. Meus olhos nela, em sua carne (em sua boca, seus ombros, seus seios) e em sua alma. Invadia-a sem pedir licença, sem me acanhar, sem me sentir acuado.

Ela iria descer e disse sem dizer que iria embora pra sempre, tal miragem que some mais cedo ou mais tarde.

Falei claro, um claro escuro, sem voz, um fio de voz, um fio de mim, mas não dei a tal licença. Reuni o dobro de coragem que sempre tive, o triplo da coragem que precisava pra falar com cinqüenta mil no movimento estudantil e disse pra ela entre romântico e pateta, entre confuso e poeta: me dê seu endereço. Preciso te mandar uma carta, uma carta perdida, uma carta traída, uma carta amassada, uma carta estampada de mim confuso e real, verdadeiro e banal, uma carta desconhecida, uma carta desesperada, uma carta cantada, uma carta bailada, uma carta banhada de sangue-de-vinho-de-suor-de-gozo-de-perfume o meu, o meu eu expresso nessa carta pra tu!

Por favor, me dê seu endereço.

Pelo amor de Deus, me dê seu endereço.

Ela foi paciente. Sentou-se e sorriu lisonjeada (as mulheres amam ser cortejadas) e me deu seu endereço que bem que pode ter sido inventado pra que esse cara com cara de jovem utópico não lhe encha de palavras vãs. Foi-se embora, desceu dois pontos depois do que tinha que descer, mas me deu um suave beijo na bochecha. Um beijo molhado que me deixou feito múmia: estático.

O tempo se passou desde esse dia. Três dias. Não fui mais na facu. Jurei-me doente. Esse amor reprimiu minha ideologia. Toda minha ideologia dissolvida nesse amor. Minhas causas (micro-revoluções) se voltaram todas pra ela. Estou de fato doente. Estou com febre. Estou com tontura. Dor no corpo. Estou confuso. Acho que seu beijo me transmitiu um vírus ou um feitiço. Estou com febre. Tento escrever-lhe a tal carta mas nada sai de minha boca, nada sai das minhas mãos, nada sai de mim. Estou com tontura. Não sei como começar, não sei como conduzir, não sei como encerrar. Dor no corpo. Eu que sempre redigi discursos agora estou estático, feito múmia. Estou confuso.

Não paro de olhar minha folha de sulfite em branco, vazia, carente, querendo umas letras.

No papel só o título resumido em uma palavra escrita com caneta preta e letra tremida, dessa que é minha carta mais infindável: Letícia.

LETÍCIA

Vinícius Piedade

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