26.1.06

Estranha preferência

A todas as mulheres autênticas,
em especial Aninha Tavares, Dani Almeida e Marcela Giannini


Às vezes eu acho que tudo o que um homem quer é encontrar uma mulher autêntica. Mas eles sempre acabam ficando com as padronizadas. Sorriso padronizado. Jeito de ajeitar o cabelo padronizado. Comentários padronizados. Corpo padronizado. Roupas padronizadas. Até o sexo deve ser padronizado. E burocrático! Eles fogem das autênticas. Os mais inteligentes acabam se aproximando das autênticas e até rolam uns affaires, mas elas sempre acabam se tornando ótimas amigas, daquelas de bater no ombro, de falar merda às gargalhadas e fechar o boteco com a cara cheia de cachaça e o garçom jogando água na calçada pra expulsar os bêbados derradeiros... Um belo dia, o amigo inteligente da amiga autêntica aparece com uma nova namorada padronizada e começa a se afastar, “hoje não vou pro bar”, “hoje é um mês de namoro”, “hoje é dia dos namorados”, “vou conhecer a mãe padronizada da namorada padronizada” e por aí vai. Até que um dia o amigo inteligente dispensa a sessão daquela mostra especial do Estação ou do Cachaça Cinema Clube no Odeon pra ver um enlatado hollywoodiano meloso com a namorada sorridente, e deixa de ser considerado inteligente pela amiga autêntica. Aí já é demais! As amigas autênticas costumam se reunir em botecos autênticos para tomar cerveja e falar de várias coisas, afinal, como são inteligentes, têm muitos assuntos para conversar. Mas sempre acabam falando também dessa estranha preferência dos homens, mesmo dos inteligentes, por meninas padronizadas. Assim formulou-se um novo conceito, baseado numa boneca que sempre dava um sorrisinho, sempre o mesmo, enjoado e chato, e nada mais. Guigui era seu nome. Mas por que os homens preferem as Guiguis? Talvez para se sentirem superiores, para se sentirem mais inteligentes e mais autênticos. Afinal, com a ascensão das mulheres no mundo do trabalho, com a liberação sexual etc e tal, as mulheres tornaram-se uma ameaça. Mas eles não podem viver sem as mulheres. Então, procuram as mais sem sal, aquelas que chamam menos atenção, que têm menos opinião própria etc e tal. Enfim, as padronizadas. Mas talvez não fosse isso. Porque se eu acho que tudo o que um homem quer é encontrar uma mulher autêntica... Talvez eles tenham medo de lidar com a responsabilidade de ter exatamente aquilo que sempre quiseram. Como ter aquilo que se quer, num mundo em que somos sempre instigados a querer ter o que não queremos e a ser o que não somos, só pra consumir, consumir, consumir? Não, seria uma afronta ter o que se quer nesse mundo. Uma afronta a todos aqueles que ralam a vida inteira para ter tudo aquilo que nunca desejaram de verdade ter. Uma afronta a todos aqueles que... Uma afronta. Não, é melhor acreditar que o que se quer não é o que se quer e querer o que todo mundo acredita que quer. É mais confortante. Menos conflitante. É mais... Pode ser mais... Mas será que é possível ser feliz assim? Vejo alguns rostos a minha volta, olho para os casais padrão, eles parecem alegres. Mas será que estão felizes? Alegria e felicidade são duas coisas muito diferentes. Sei disso, porque nos momentos em que estou mais infeliz procuro extravasar o máximo de alegria possível. Uma alegria contagiante. Uma alegria, diria mesmo, sufocante. Uma superfície bem espessa de alegria para esconder o vazio que está por dentro. Por essa breve olhada para a superfície dos sorrisos padronizados e idiotas dos casais a minha volta, não posso dizer se são felizes. Mas sei que podem não ser. Sei disso por experiência própria. Aquele casal ali não pára de rir e se olhar um olhar meigo e apaixonado, de mãos dadas, sorridente, devem estar carentes, coitados! As pessoas costumam despejar toda a carência afetiva de uma vida inteira em seus “pares românticos”. É por isso que a maioria dos relacionamentos não tem futuro, e pior, não tem presente, é só uma sucessão de cotidianos acumulados acomodados entre um beijo e um berro. Todos os casais brigam. Mas todo mundo diz que isso é natural só porque todo mundo briga. Besteira! Não acho que uma coisa é natural só porque todo mundo faz. Aliás, quanto mais gente fazendo e gente copiando o que tem gente fazendo, mais isso deixa de ser natural e passa a ser um comportamento social. E tudo o que é construído socialmente, tudo o que é cultural, pode ser transformado. Aliás, até o que é natural pode ser transformado. Mas as pessoas dizem que não, que você tem que se conformar porque é natural. “A vida é assim!” Idiotas! Enquanto vivem a vida “assim”, não percebem que deixam de viver, que suas vidas vão sendo sugadas pouco a pouco até o dia de sua morte. É por isso que olham para trás e querem acreditar que tem alguma coisa esperando por elas lá na frente. Precisam de um Deus que salve suas almas, porque elas mesmas não se salvaram em vida. No final, vão ser comidas pelas minhoquinhas. A não ser as que têm dinheiro para virarem cinzas e serem jogadas em algum lugar qualquer pra serem carregadas pelo vento. Estas não serão comidas por minhocas, pelo menos. Mas que diferença isso faz, já estão mortas mesmo. Volto ao bar. Minhas amigas dão gargalhadas e eu perdi o fio da meada. Droga, vou dar uma de chata e pedir para repetir a piada. Mas aí já vai ter perdido a graça. “Garçom, traz mais uma, por favor”. A gente enche os copos e brinda às mulheres autênticas, que permanecem intrigadas com a estranha preferência dos homens, em especial daqueles que a princípio (pelos menos até o próximo filme enlatado meloso) julgamos inteligentes.

2 comentários:

Anônimo disse...

A grande pergunta que ficou quando terminei de ler esse texto é: Será que ser uma mulher autêntica significa então ir para o bar e ficar bebendo e observando a vida alheia desses casais "padronizados" e "alegres"?

Já que aquelas que vão ao bar e não se misturam com as guiguis são consideradas "autênticas", meu questionamento à autora é: Onde está a autenticidade em fazer isso?

Sob esse sentido, talvez seja melhor não ser uma abominável "guigui" ou tão pouco uma pretenciosa "autêntica", mas algo melhor do que as duas alternativas oferecidas. E posso afirmar que existem muitas mulheres que podem ser classificadas assim, e felizmente sou casado com uma destas.

Sinceramente, escrevo isso apenas com o intuito de nos despertarmos para os reais valores da mulher, que são muito mais nobres do que uma mesa de bar ou se apresentar de uma forma "padronizada". Espero que isso seja um dia levado em consideração pela autora num eventual próximo texto sobre esse tópico.

Cordialmente.

Beatriz Provasi disse...

Oi anônimo. Ser autêntica é muito mais do que encher a cara num boteco, sem dúvida. É expressar abertamente o que se pensa, por exemplo, e assinar embaixo. Este texto é uma generalização e foi escrito há algum tempo a partir de situações específicas comentadas em mesa de bar. Rótulos são sempre reducionistas, sei disso. Mas às vezes funcionam. E a questão central do texto não é nem ser "guigui" ou ser "autêntica", mas questionar por que grande parte dos homens optam por ter ao seu lado mulheres inexpressivas e submissas.