9.5.08

Liberdade, entre os presos

Tem hora que eu lembro porque eu faço poesia. Dia 19 vou falar poesia para os pacientes de um hospital psiquiátrico. A poesia é o que me salva da loucura. É meu chão. Um chão de nuvens. Mas ainda assim um chão. Um chão onde eu piso descalça pra suavizar as dores dos cacos cravados nos pés. Um chão que me eleva, me faz levitar, o chão onde eu nunca vou deixar de pisar. A poesia é o que me salva da loucura, porque em primeiro lugar a poesia em mim é extravasamento. É botar pra fora tudo o que é angústia, tudo o que é veneno, tudo o que me mata por dentro, tudo o que me invade de fora sem que eu consiga filtrar. A poesia é esse filtro que vai purificando toda a água que corre em mim, toda a água que escorre de mim para o mundo, tudo o que vaza... Sim, eu ia falar da poesia como salvação, mas em um outro aspecto. É que as palavras me vêm em jorro, é tudo líquido demais, e às vezes eu tenho que nadar um pouquinho para alcançá-las, elas se adiantam numa correnteza e eu perco o fio do pensamento. Cheguei. Ontem fomos numa delegacia. Fui com os Voluntários da Pátria, um grupo de artistas, amigos queridíssimos, parceiros, companheiros, militantes, mesmo! Quando eu fazia movimento estudantil eu acreditava que ia mudar o mundo. Era uma coisa quase religiosa. Hoje, não. Hoje eu sei que eu mudo o mundo. Não é crença. É consciência. O Voluntários é esse grupo que tem consciência da mudança que produz no mundo, e que o mundo produz em si, porque ser e meio não estão separados, afinal. Nós que fazemos o mundo em que vivemos, e é desse mundo que nós somos feitos. E a gente faz um mundo mais habitável por seres humanos mais humanos. É isso o que a gente faz com poesia. É por isso que eu não enlouqueço, e é por isso que eu vivo. Porque eu não acredito em deus, em vida após a morte, em nada disso. Inferno e paraíso, é tudo aqui mesmo. E pra ir do inferno ao paraíso, a gente tem é chão pela frente. Se um dia eu achasse que esse caminho eu não posso construir aqui, eu ia logo descansar embaixo da terra, que é bem mais confortável. Cheguei. Fui com o Voluntários pra uma delegacia em Nova Iguaçu falar para os presos, dentro das celas. Na ocasião estava se comemorando o direito conquistado lá para que os presos sem condenação possam votar nas eleições. Porque afinal eles são cidadãos. E tudo isso tem a ver com uma política de ressociabilização. Uma hora aquele cara lá que cometeu um crime, seja qual for, vai terminar de cumprir sua pena e vai retornar ao convívio social. O que ele vai fazer? Se não tiver opções, se não tiver oportunidades, se tudo o que ele encontrou na prisão foi ainda mais violência, dificilmente ele consegue sair da criminalidade. Aí ele vai voltar pra prisão, e vai voltar pra cidade, e vai voltar pro crime, e vai voltar pra prisão, e vai voltar pra cidade, e vai voltar pro crime, até morrer ou ser morto. Aí vai um grupo de malucos e monta uma biblioteca na delegacia. Aí vai um grupo de malucos falar poesia dentro das celas. Aí a gente começa a estabelecer um diálogo que eles provavelmente nunca tiverem, e de um jeito que provavelmente eles nunca tiveram, porque não é chegar julgando, e dizer pro cara o que é certo o que não é, é simplesmente apresentar uma outra possibilidade de expressão e deixar que eles assimilem do jeito deles. Pra alguns a gente não disse nada, pra outros parecemos absurdos, mas se apenas um ali sair transformado, já vale, e muito! Eu tenho certeza que eu saí de lá transformada. Eu olhava os presos e eu não via criminosos ali, eu via seres humanos como eu, que poderiam ser poetas, produtores culturais, atores, ter feito uma faculdade como eu, poderiam nunca ter cometido, e podem nunca mais cometer um crime. Vi muitos rostos jovens, uma vida inteira pela frente. Em momento algum tive medo dos presos enquanto estive lá. Isso já é uma puta transformação, porque antes de ir, eu tive medo, por puro preconceito! Confesso que tive medo dos evangélicos, mas isso é uma outra história, e é mais conceito que pré. É que quando chegamos lá estava tendo um culto evangélico dentro da cela onde iríamos entrar. E eles gritavam "deus" com tanta fúria que eu achei que iam nos engolir! Com fanatismo eu não sei dialogar. Pode até ser uma deficiência minha. Mas é que eles estão tão fechados dentro de uma doutrina, que você não encontra brecha pro diálogo. Mas mesmo na cela dos evangélicos... enfim, nem todos são evangélicos dentro da cela, alguns não deviam estar nem aí pro culto. Um parêntese: se eu fosse presa e se celebrasse um culto daquele todos os dias dentro da minha cela, perguntaria ao delegado se isso faz parte de uma nova técnica de tortura! Fecha parêntese. Pois naquela cela um rapaz pediu à Betina que lesse um texto dele, escrito numa caderneta cheia de anotações. O texto era bom, o cara tinha uma puta consciência, e pra ele ali eu sei que a nossa presença fez diferença! Só por ele já valeu enfrentar os evangélicos, ouvir um ler uma passagem da bíblia e o outro dizendo "isso que é poesia"! Se bem que a bíblia, realmente, pra mim, é literatura pura, pura ficção, o maior best seller do mundo, sem sombra de dúvidas. Na outra cela a coisa já fluiu muito melhor, não tinha culto, e tinha um pessoal mais interessado, os caras cantaram, dançaram, no final virou uma festa! Um dos presos falou com o Igor que lembrava da apresentação que eles fizeram lá no ano passado, e na saída mandou "espero que da próxima vez que vocês vierem eu não esteja mais aqui". Espero mais, que ele saia e a gente se encontre por aí, e ele esteja bem, com um bom emprego, vivendo a vida honestamente, com alegria, com esperança, com liberdade! E liberdade é muito mais que andar solto pelas ruas. É tudo o que eu quero conquistar, pra mim, pra todos! "liberdade, essa palavra / que o sonho humano alimenta / que não há ninguém que explique / e ninguém que não entenda" (cecília meireles) E eu já ia me esquecendo... é por isso que eu dizia lá no começo desse texto, que tem hora que eu lembro porque eu faço poesia. Estar na prisão deixou ainda mais vivo em mim o principal motivo. Eu escrevo por liberdade! É isso.

obs1. quem fomos: Bayard Tonelli, Beatriz Provasi, Betina Kopp, Douglas, Edu Planchêz, Gean Queiróz, Glad Azevedo, Igor Cotrim.
obs2. onde: 52ª DP - Nova Iguaçu/RJ.
obs3. dia 19 vai ser em Engenho de Dentro, também com os Voluntários.
obs4. faltou alguma informação?

4 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Bia... entrei em seu blog pelo Verbologue, do Dudu e do Daniel... assisti ao encontro de poesias na vaca do drumond ano passado e entrei em contato com os meninos... gostei muito do seu blog... e adorei essa sua mensagem, a poesia como liberdade... e tambem a experiencia que vcs tiveram indo levar poesia pro pessoal da prisao... de acreditar no homem, na mudança... Valeu, um Abraço
Dani

Beatriz Provasi disse...

bem vinda, dani! também estive na vaca. quinta é aniversário dos ratos, vai lá! beijos!

Dani Santos disse...

Olá, Bia, valeu o convite... sou de maringá, gostaria muito de estar aí sim, compartilhando toda a energia da poesia de vcs... mas fica pra uma proxima vez. eu lembro de vc declamando no encontro de poesia na vaca. gostei muito do que vc escreve... vou add seu blog ao meu. Beijo

Beatriz Provasi disse...

valeu, dani! beijos!