5.8.08

sobre a palavra, a santa, a puta e a navalha na cara

Outro dia, do nada, fui chamada de puta por uma mulher que eu desconhecia. Talvez porque eu tenha tido um caso com o marido de uma amiga dela. Sobre isso, tenho a consciência muito tranqüila. Eu tenho a minha ética pessoal, que sigo com correção, e nela não há lugar pra culpa ou autoflagelação. Pois bem, não fui eu que dei em cima dele, não o forcei a nada, apenas cedi à tentação, não era amiga da mulher, e nunca me aproximei a tal ponto (homem de amiga eu respeito, elas sabem disso e não têm com o que se preocupar). Depois eu me apaixonei e deixei isso claro, porque a situação me incomodava, e ele manteve a relação, alimentando em mim esperanças que eu, como uma mulher inteligente, nunca devia ter tido, mas a paixão emburrece até os seres mais geniais! Também não poso de santa não, eu sabia que podia magoar alguém (especialmente a mim, que fui a única a sair realmente perdendo dessa relação). Eu o quis, e o quis muito, e ninguém tem nada com isso!
Quando, no meio de um show, aquela mulher veio me chamar de puta, fiquei perplexa e sem reação. A mulher ainda me deu uns tapinhas de leve no rosto, enquanto dizia “você é uma puta, vagabunda”, querendo arrumar confusão. Eu odeio barraco, odeio baixaria. Ignorei a mulher e fiquei lá curtindo o som. Ao fim do show, Tavinho Paes me chama ao palco pra falar um poema. Era show do Arnaldo Brandão e Tavinho falou um texto muito foda no meio, e quando terminou, o público em peso gritava “poeta! poeta!”, para que ele retornasse. Um parêntese: muito foda isso, né?! um público que não é de poesia berrando “poeta!” Em vez de falar outro poema dele, Tavinho me chama, e quando eu subo ao palco, a descontrolada desclassificada começa a gritar “puta, puta!” Então, eu vou falar um poema praquela pessoa que tá gritando ali, e mando:

a santa e a puta me habitam

na casa que sou
ora mosteiro
ora pardieiro
pouco bate a luz do sol
tenho hábitos noturnos
e hábitos de freira
hábitos me vestem de negro
coabitam na vastidão do escuro
ora clausura, convento
ora vento, raio, tufão
ora sussurro de palavras, oração
e o verbo se solta, o sangue ferve, vira verve
elas sentam juntas no meu colo para tomar chá
com pedrinhas de açúcar e tilintar de colheres
há pouco o que se falar
são mulheres
outras vêm brincar no jardim dos meus cabelos
são ainda crianças a me fazer tranças embutidas
uma me faz cócegas nos pés
só para eu dar risada sem motivo
todas moram em mim
as pequenas dormem cedo
a santa reza antes de deitar
a puta se deita acordada
há pouco o que se falar
todas têm medo
do escuro, de deus, do desassossego
todas rezam na hora do aperto
e guardam, sempre, a navalha entre os dedos

Nunca senti as palavras em mim tomarem tanta força! No último verso, eu dei a navalhada na cara da mulher. Eu senti e tenho certeza que ela também sentiu. Enquanto ela gritava, o público pedia que ela se calasse, e ao final fui super aplaudida, de gente vir me cumprimentar depois e tudo mais. Sai de lá vitoriosa, feliz por ser poeta, e ter nas palavras os tapas que eu não dou com as próprias mãos.

Ainda por cima acho de um machismo nojento xingar de puta a mulher que se envolve com homem casado. Primeiro, é um erro crasso, porque ela não cobra, mas dá de graça (às vezes até paga o motel...). Segundo, quem tem o compromisso e a responsabilidade por ser ou não fiel à relação que estabeleceu, nesse caso, é o homem. E por mais que ele queira posar de santinho (não digo que foi o meu caso, não faço nem idéia do que ele disse à esposa), e vá dizer que a mulher praticamente o agarrou ou outras mentiras que os homens inventam (sim, porque em geral inventam), mulher nenhuma consegue estuprar um cara (a não ser com cenoura ou cabo de vassoura), ainda mais repetidas vezes, que é o que se requer para o estabelecimento de um “caso”.

Mas vamos deixar pra lá, que tudo isso é caso encerrado, e quem merecia já recebeu sua navalhada, só queria mesmo comentar como naquela noite senti o poder das bem ditas palavras.

4 comentários:

Tchello Melo disse...

Com esta onda politicamente correta, só falta agora um referendo sobre a licitude do porte de palavras, as brancas e as de fogo.

Só a arte redime!!!

Bjo!

Beatriz Provasi disse...

olha que as branquinhas alguém pode achar que é pra cheirar! rs... aí proibe logo tudo, que nenhuma palavra se salva da possibilidade de um duplo sentido!
eu sou sempre incorreta, mas dentro da minha incorreção, há coerência entre o que eu faço e o que eu penso. e como só ajo de acordo com o que eu acredito, além de incorreta eu sou incorrigível!... mas como diz o mário no poema do post abaixo, "que se fodam as puras, que gozem as putas"!!! bom te ver aqui. ah, vou te linkar. beijos!

Anônimo disse...

ha! perfeito. é o que chamo de tapa com luvas em grande estilo!... quer dizer, navalhada com luvas! será que vc pode me emprestar suas palavras? tbm preciso sair por aí dando umas navalhadas! bjs. waleska.

Beatriz Provasi disse...

use-as e abuse-as, waleska! beijos!