2.7.12

carta do porão

para Chacal e Tavinho Paes

Desse porão escuro, ouço latidos. Não sei se de fora ou de dentro. Os cães estão por toda parte. Displicentes, filando restos de banquete. Ou atacando ferozmente. Eu desci para o porão quando os cães invadiram a casa. Os cães ladram. Eles sentam à minha mesa para jantar com a tevê ligada, dormem na minha cama, dirigem meu carro. Eu vim para esse canil escuro debaixo da sala. Ouço latidos e a tevê ligada. Os cães devem vestir as minhas roupas, ou destroçá-las com os dentes, tanto faz. Passei a me vestir de palavras. Palavras escorrem da umidade das paredes. Há muitas infiltrações nos porões das casas. Os cães devem esquecer as torneiras ligadas. Há muitas goteiras. Passei a encher baldes de palavras, para jogá-las no ralo. Agora os cães deram pra fumar meus cigarros. Já estou por aqui com eles. Não gosto que bebam do meu copo, já disse. Não são cães adestrados. Aprendi a rosnar com eles e já estou com os caninos avantajados. “Cuidado, cão feroz” – pregaram na minha testa. Nunca entendi por que alguns cães abanam os rabos e fazem festa, e têm latidos finos e pequeno porte. Pelo tom do latido eu posso adivinhar o tamanho do poeta. Sempre preferi os vira-latas aos de pedigree, e dez mil vezes os de caça. Agora no porão faz frio e eu não sei se é noite ou dia. Os cães nunca dormem. Os latidos não param. Já estou andando sobre quatro patas e sei das coisas pelo faro.

Ps. Texto de abertura do livro "Todos esses cães latindo no peito"; fotos: Vitor Vogel

Nenhum comentário: