15.11.06

As asas dos suicidas

Não saberia dizer o que fazer para ser uma companhia verdadeira. Eu, de corpo presente, não estou aqui. Não nasci para completar ninguém. Cresci só fazendo aumentar minha incompletude. Tem gente que sabe, desde criancinha, o que vai ser quando crescer. Tem gente que tem sonhos inabaláveis e plenamente alcançáveis. Tem gente que até se julga feliz. Há mulheres que se julgam completas com marido e filhos. Eu nunca quis saber de carregar marido nas costas nem filhos agarrados às pernas. Tenho o ventre seco. Carregado de desejo. Mas oco. Um ventre feito para contrações sexuais, e não para gerar e guardar vida. Este vazio eu não quero preencher. Sou plena em minha incompletude.
Admiro os que se completam. Os que seguem o ciclo da vida sem muitas dúvidas. Os que crêem em Deus. Os que crêem na humanidade. Admiro os que crêem. E me solidarizo com os que duvidam. Os que duvidam, como eu, também não me são boas companhias. Os que duvidam, como eu, também se calam. Os que duvidam têm olhares traiçoeiros, têm olheiras, têm insônias, têm angústias, são instáveis, são péssimas companhias, são temíveis influências nefastas. Os que duvidam são infelizes e padecem de uma melancolia quase doce dos suicidas que só morrem porque não conseguem voar.
Eu gostaria de ser companhia para as pessoas que amo, de me sentir preenchida pelo amor que me dedicam. Mas o amor também tem seus grilhões e eu tenho medo de ser aprisionada. Então eu vôo com as asas negadas aos suicidas para bem longe daqui. Eu vôo com essa sensação de cair. Esse abismo sob os pés no chão.
Eu sequer posso me dizer má companhia, porque não chego a ser companhia pra ninguém. Os livros me fazem companhia, os filmes me fazem companhia, até peças de teatro me fazem companhia, mas pessoas de corpo presente, não. Pessoas de corpo presente são muito abruptas e imprevisíveis. Pessoas me assustam e me fazem me recolher em mim. Talvez seja por isso que eu goste tanto de arte. A arte é uma mediação entre as pessoas e eu. Entre o escritor e eu, há o livro. Entre o poeta e eu, o poema. Entre o ator e eu, o personagem. Entre o cineasta e eu, há imagens projetadas na tela. Entre o músico e eu, há a letra e há a melodia. Entre o artista e eu, há a arte. E é ela que sempre me acompanha e pra quem me entrego inteira.
Entre mim e você, há este texto, há esta tela. Mas te asseguro que aqui eu sou inteira como não me verás em lugar algum. Aqui não tenho medo de beirar o ridículo com essa minha mania de escrever umas baboseiras piegas pra caralho só pra exorcizar meus demônios quando me pego melancólica numa noite qualquer. Aqui, e somente aqui, eu posso ser uma companhia (boa ou má, pouco importa) para você que me lê. Escrever é dar um drible na solidão, mesmo que o passe saia errado e o gol seja impedido. Acho que é isso. E não há mais o que eu possa fazer para ser uma companhia verdadeira. Eu, de corpo ausente, estou aqui.

9 comentários:

Anônimo disse...

beatriiiiiiizzzzzz

como sempre me pego louco lendo seus textos, seria repetitivo dizer que sempre visceralmente lindos, diretos e entusiasmante, mas eu sou repetitivo mesmo, assumo!

muito tempo não visitava sua noite qualquer, ah... ontem à noite nem te vi sair, nem conversamos o suficiente pra terminarem os assuntos!


beijins sorridentes

Beatriz Provasi disse...

Saulo, Saulo, vc sempre tão gentil!...
Pois é, eu saí à francesa. Tava na minha hora.
Vamos ver se a gente chega mais cedo no próximo pra conversar!
Beijos,
Bia

Anônimo disse...

bia, senhora dos náufragos, estilista da pena e da angústia,
como fazemos para trocar esse splin beaudeleriano, esse teto preto existencial popr ânimo e entusiasmo, por joie de vivre ? acho que a solução é o outro. sem intermediários. sem medo de ser. até já. bjo, ch.

Beatriz Provasi disse...

É o outro quem dá a dimensão da nossa solidão. Sem o outro, ela é capaz de passar quase imperceptível. Sartre deu uma definição de impacto, mas eu já o sentia: "o inferno são os outros". O que não me impede de também tentar buscar no outro o meu paraíso. Às vezes, eu encontro, baby! Vc bem sabe... Beijos!

Anônimo disse...

Lindo!Realmente,há momentos em que só a ausência te faz companhia...

Beatriz Provasi disse...

Valeu, Rachel!

Sem Cascas.blogspot.com disse...

De tão transparente que você se faz,
a chuva cai,
o sol brilha,
o arco-íris pinta e fica muito nítida a tua presença de asas abertas reluzindo céus, entre o mundo dos homens e dos deuses. Que lindamente sutil, quer "apenas" transitar pleno de liberdade num espaço de arte qualquer e sem balbúrdia, anuncir as cores do mundo.
Asas essas parecidas com a do meu discreto filho Hermes,
que não se quer mito apesar de ter vindo com nome feito como um pacto prá lá da mãe. Ele, literalmente, é um menino-avião e me mostra as nuvens que vê de cima, pelo computador e eu sonho com ele que veio através do meu ventre numa anunciação do próprio destino.
Voces, destino voar luzes de nos sorrir. Beijos, amada (e ao amdo menino hmem que não lerá essas palavras. Ousim...)

Sem Cascas.blogspot.com disse...

De tão transparente que você se faz,
a chuva cai,
o sol brilha,
o arco-íris pinta e fica muito nítida a tua presença de asas abertas reluzindo céus, entre o mundo dos homens e dos deuses. Que lindamente sutil, quer "apenas" transitar pleno de liberdade num espaço de arte qualquer e sem balbúrdia, anuncir as cores do mundo.
Asas essas parecidas com a do meu discreto filho Hermes,
que não se quer mito apesar de ter vindo com nome feito como um pacto prá lá da mãe. Ele, literalmente, é um menino-avião e me mostra as nuvens que vê de cima, pelo computador e eu sonho com ele que veio através do meu ventre numa anunciação do próprio destino.
Voces, destino voar luzes de nos sorrir. Beijos, amada (e ao amdo menino hmem que não lerá essas palavras. Ou sim...)gtrsd

Beatriz Provasi disse...

Todos precisamos de voar! Seja em vôos discretos dos nossos pensamentos, seja com as asas suntuosas de palavras belas... Voemos!...