13.4.06

A fábula da formiguinha contemporânea

Esmaguei uma formiga, dessas minúsculas, que dão muito em apartamento. Ela ziguezagueava pela mesa da cozinha, acompanhada pelo meu olhar perdido. Foi instintivo. Num impulso, tasquei-lhe o dedão. Não sobrou nada de sua matéria já tão reduzida, pó. Ergui suavemente o olhar e vi centenas delas, talvez milhares, sou péssima para calcular multidões (talvez devesse perguntar à PM e aos organizadores e fazer uma média dos dois para chegar a um número aproximado de presentes). O fato é que estavam elas, as tantas formiguinhas, enfileiradas na parede da cozinha, formando um longo e tortuoso caminho até a mesa. Trabalho de formiguinha, minucioso, coletivo, passo-a-passo, sem reconhecimento nenhum. E a outra companheira lá, esmagada pelo meu dedão, sem nem porquê. Morreu como indigente. Ninguém para chorar a sua morte. Virou pó no pó do esquecimento e logo será varrida pelo vento. E lá estão as outras trilhando seu caminho. Indiferentes à minha presença, à ameaça que represento para suas vidas, à formiga por mim espedaçada. Lá estão. São tão organizadas, mas não têm a menor consciência do que fazem. E eu aqui, tão consciente da minha desorganização, tão consciente da minha solidão, tão consciente do meu abandono estéril a essa observação despretensiosa de um bando de formigas na parede da minha cozinha. E eu aqui, capaz de chorar a morte de uma formiga, de recordá-la, de descrevê-la. Capaz de chorar a minha própria morte com o corpo pulsando. Capaz de sentir e de pensar, sentindo-me e pensando-me tão incapaz de uma organização coletiva como a destas formigas. Ah, mas elas vivem em outro mundo! Se tivessem consciência do mundo em que vivem, talvez sofressem de estresse e depressão, talvez fizessem uma cirurgia plástica para se adequar aos padrões de beleza ditados para um formiga ideal, talvez vendessem seus corpos para se alimentar, pior, talvez vendessem suas almas, talvez temessem a morte, se matassem umas às outras, criassem um deus à sua imagem e semelhança, criassem um demo à sua imagem e semelhança, criassem problemas e rogassem aos céus a solução... talvez estivessem tão ocupadas, tão sem tempo, que seu tempo de vida passasse em vão... e talvez tivessem quem chorasse a sua morte... mas quem choraria a sua vida???? Tal qual uma cigarra, canto o trabalho destas formigas, não importa a estação do ano. O inverno é aqui. Mas, putaqueopariu, como tem formiga nesta casa! Amanhã vou dar um jeito nisso.

2 comentários:

Dalva M. Ferreira disse...

Putaqueopariu digo eu, Beatriz!!!

Que texto mais bem escrito! Que invejinha!!! Eu luto feito uma doida para escrever prosa: sai artificial, eu tenho que refazer e refazer e refazer... e agora, com o blog, não são mais aquelas bolas de papel jogado ao chão, mas carreiras e mais carreiras de letrinhas deletadas, coladas, copiadas... vou linkar você lá no meu, posso?

Parabéns, Beatriz!

Ah: cheguei aqui thru Vianna, OK?

Beatriz Provasi disse...

Obrigada, querida! Claro que pode linkar! Beijos!