18.1.10

a solidão atrás da porta

eu converso com a solidão
ela me conta histórias repetidas
as mesmas histórias, sempre, as mesmas
ela retorna os assuntos como um disco riscado
a solidão fala comigo deitada na rede
enquanto joga freecell no laptop
não desgruda os olhos da tela
esquece o que estava falando
me pergunta dez vezes a mesma coisa
a solidão não é só desatenta
é que ela esquece as coisas
depois de anos de convivência,
ela pode virar pra mim, assim, de repente
e perguntar meu nome
com uma angústia sincera de quem não se lembra
a solidão esquece o caminho de casa
raramente ela sai de casa
ela não é do tipo que retorna
ela permanece
ela consegue ficar imóvel por horas e horas
como uma estátua
quase sem ser notada
ela já faz parte da decoração da casa
mas é uma estátua enorme fincada no meio da sala
pra atravessar para o outro lado, deve-se abaixar,
depois pular, e rastejar para passar por baixo,
e ainda desviar sem ziguezague no final
assim se atravessa o cômodo
na volta, faz-se o caminho inverso:
ziguezague, rastejar, pular e abaixar
é quase uma corrida de obstáculos
mas faz-se o mesmo trajeto todo dia
então ela fica ali, quase sem ser notada
mas ela fala comigo e, às vezes, me olha nos olhos
então eu sei que ela não é uma estátua
às vezes ela me acorda de madrugada e me chama pra tomar café
às vezes ela me acorda aos berros e tenho vontade de tacá-la na parede como um velho despertador quebrado que não pára
mas não posso tacá-la na parede
ela não é um velho despertador quebrado
é apenas uma solidão como medo de ficar sozinha
ela até dorme de luzes acesas porque tem medo do escuro
e já me pediu para ficar conversando com ela no banheiro
enquanto ela tomava banho
a solidão tem medo de si mesma
e nós, com medo dela, a deixamos apavorada
e quando ela grita de medo
nos apavora
por isso eu aceito seu convite para um café
e converso com ela calmamente
ela deitada na rede
eu no sofá da sala
fumamos juntas um cigarro
respondo as mesmas perguntas todas as vezes em que são feitas
e ouço atentamente as mesmas velhas histórias
então ela me sorri, subitamente doce,
e pede que eu não vá embora.
“mas eu não posso ficar para sempre neste sofá, entende?
eu não faço parte da decoração da casa”
ela entende, mas me expulsa aos berros quebrando pratos e copos
para que eu não a veja chorar
ela nunca sabe se eu vou voltar
mas eu sempre volto
e como se eu nunca tivesse ido
retornamos a conversa do mesmo ponto
o café frio na xícara, a bagana no cinzeiro
o mesmo cd no repeat
o freecell no laptop
as mesmas velhas histórias
outros pratos e copos voando
as mesmas lágrimas quando eu bato a porta
as mesmas e ainda outras que vão se somando
a cada vez que eu bato a porta
as mesmas e outras e outras
e ainda todas as que virão
as lágrimas da solidão
são sempre lágrimas de despedida
escondidas atrás da porta

2 comentários:

João Campos Nunes disse...

"é apenas uma solidão como medo de ficar sozinha"


E se não são mesmo, as solidões, crianças em um dia chuvoso.

Leandro Damasio disse...

m. bom!