30.1.10

SE ESPANTAR É PRECISO

Eu já fui mais livre, não sei onde me perdi no caminho, se foram as coisas da vida me atropelando e me apontando direções pra onde eu não queria continuar seguindo mas fui, sem dizer nada, porque já estava indo e voltar talvez fosse um pouco arriscado, mas e se eu tivesse dobrando aquela esquina? Não, eu vim por onde devia, mas algo se perdeu de mim, se descolou com a sola dos meus sapatos gastos da caminhada. Eu nunca fui de pegar atalho, embora aposte corridas sem saber nem onde é a linha de chegada, eu simplesmente corro, corro, corro, até cansar e parar pra fumar um cigarro, e ficar olhando o teto descascado do meu quarto, e observando cada detalhe, cada mancha na pintura. O problema é que eu não me importava com nada, sim, é isso! Eu de repente comecei a me levar a sério e isso é o meu fim. Porque eu não sou de se levar a sério. Se eu me encontrasse comigo, sem me conhecer, assim, desavisada, eu daria risada, sim umas boas risadas. Mas eu resolvi aceitar o título de poeta e a partir daí tudo o que eu escrevo não presta. Porque é pra ser poesia. E poesia não presta pra nada, certo? Me arrume uma utilidade pra poesia além de conquistar namoradinhas? É, você mesmo, que declama sonetos de Shakespeare pras menininhas. Poesia serve pra algo além disso? Acontece que com os rapazes não é a mesma coisa. Homens não gostam de poeminhas declamados no ouvidinho. Isso não conquista. Se eu fosse uma poeta feia de doer, quero ver se eu levava algum pra cama só com os meus poeminhas... porra nenhuma! O cara ia falar, poeta é?, porra que bacana! E olhar pra gostosa com um vestido preto colado que acabou de passar na rua. Então na real essa coisa de ser poeta não me serve de nada, de absolutamente nada. Não tem nenhuma utilidade. Pra ter os olhares de um homem eu simplesmente ponho um vestido preto colado e jogo os cabelos pra trás no meio do meu rebolado, deixando meu Chanel Chance invadir suas narinas. O efeito é muito mais rápido. Nem precisa pensar. Mas se quando eu sento pra conversar, o cara ainda percebe que eu penso, melhor ainda. Pelo menos pro tipo que eu gosto, porque homem que gosta de mulher burra simplesmente não me atrai, então eu não preciso fazer o tipo risadinha e frases tolas. Então eu simplesmente não preciso do título de poeta pra nada. E uma vez que eu não me levo a sério como poeta, eu não preciso mais de trava. Não preciso pensar no que eu vou escrever. Não preciso. E isso me dá uma liberdade que eu prezo tanto! Foda-se que eu tenho um blogue e alguém vai ler! Lê quem quer e se não gostar cai fora. Pronto. Isso não é nem nunca foi janela pra ser descoberta por alguma editora. Eu não acredito nisso, em descobertas. Eu acredito em fazer a coisa acontecer, e isso não tem nada a ver com o ato de escrever. Se tem alguma coisa que eu escrevo que eu acho que merece publicação, eu publico. Nem preciso de editora pra isso. Eu mesma editei meu primeiro livro. O blogue é pra deixar a coisa correr solta, o pensamento livre. Já pensei em deletar um monte de coisa. Mas não. Tudo faz parte de mim. Toda a breguice de uma série de poemas que eu detesto. Foda-se, eu escrevi aquilo ali porque eu precisava escrever naquele momento. Porque a poesia é a minha terapia e eu não me envergonho disso. Se tem gente que paga analista, por que eu não posso criar um blogue, que além de tudo é de graça? E na real eu acho que os meus melhores poemas foram os que eu não queria escrever, os que me saíram, sem eu nem perceber, porque precisavam sair, porque estavam me sufocando. E aí na quinta-feira eu me peguei me emocionando de novo com um poema antigo escrito num fôlego só, quando eu ainda nem me dizia poeta, e que eu já estava, confesso, de saco cheio de falar, porque as pessoas gostam dele e as pessoas pedem que eu diga ele, mas ele já tinha deixado de me emocionar, não por não ser atual ainda, mas por estar meio gasto de tanto ser dito, ele tinha se esvaziado em mim. E depois disso eu pensei que eu não tenho mais que escrever porra nenhuma. Eu tenho é que me deixar permear pelas coisas do mundo. Tenho andado meio anestesiada. As coisas já não me doem tanto. Ou antes, continuam doendo, mas talvez eu tenha perdido o espanto. Ou ele está em algum lugar de mim que eu não consigo acessar mais com tanta facilidade. É o espanto que causa poemas. Não é a dor, não é o amor, não é a solidão, nada disso. É o espanto. O espanto diante de uma dor desconhecida. De um amor inesperado. De uma rasteira da solidão. O espanto diante de uma casa abandonada, de um menino dormindo sob a fachada do edifício, dos pés descalços na chuva. O espanto diante de uma flor que nasce do bueiro. É o espanto diante das coisas, das coisas todas. E de repente parece que eu não me espanto mais com nada. A última vez que me espantei foi quando o Mário levou uns tiros. E já não me espantava e me espantei tanto que antes que aquilo me causasse um poema, me causou foi uma paralisia diante da tela onde eu lia e relia a notícia, como se não compreendesse. Eu não quero esse tipo de espanto. Abdico de escrever poemas se for para me espantar com essas coisas. Essas coisas que causam esse tipo de espanto, elas simplesmente não tem que existir! Mas existem e o pior mesmo é quando a gente já não mais se espanta. Não porque não escreve, mas porque alguma coisa morreu dentro de nós, alguma sensibilidade ficou aterrada por tantos outros espantos. Às vezes a dor é tão forte que a gente já não sente, perde os sentidos. E eu acho que hoje em dia a gente vive isso. Eu lembro da história do menino que foi arrastado pendurado pelo cinto de segurança pelas ruas do Rio, no carro levado pelos assaltantes. Aquilo gerou uma tremenda comoção, pela brutalidade da coisa. Porque de tanto morrer gente todo dia, e os noticiários estarem encharcados de sangue, a brutalidade tem que ser um nível acima pra causar comoção. Se no dia seguinte um outro menino é arrastado, e no dia seguinte um outro, e um outro... Pode escrever: as pessoas param de se comover. Não se espantam mais. Elas assimilam a coisa à sua rotina. Então a próxima tragédia tem que ser ainda maior pra despertar as sensibilidades adormecidas. Dá pra entender como essa falta de espanto é nociva? E isso não tem nada a ver com poesia. Foi só o caminho torto dessa livre escrita que me fez chegar nesse ponto. Eu não quero escrever porra nenhuma. Eu quero, enquanto houver motivo, que haja espanto! E existe tanto motivo, que a gente tem que se espantar todo dia. A gente tem que se espantar com o cara que mete a mão no dinheiro público, e não sentenciar “todos fazem”, e achar normal. A gente tem que se espantar com as crianças que vagam pedindo dinheiro ou vendendo balas pelas madrugadas, com os pais ausentes, com o Estado omisso, e com a naturalidade com que viramos a cara e continuamos a tomar nossas cervejas. A gente tem que se espantar com isso! A gente tem que se espantar com um padrasto que enfia agulhas num menino e dá no jornal. E com todas as meninas estupradas de quem nunca vimos a cara. A gente tem que se espantar! Com as prisões lotadas e com os loucos abandonados nos hospícios. Com os traficantes, e com a polícia. Nossa polícia é digna de espanto! Por que a gente acha normal ser pego com um baseado e dar um dinheirinho pro policial? Porra! Não é só falta de espanto, é conivência. Claro que não dá pra culpar o usuário pelo tráfico, se droga vendesse na farmácia, tava resolvido. Mas será que não dá pra perceber que se NINGUÉM desse dinheiro pra polícia, a polícia não teria como ser corrompida?! A gente também tem que se espantar com a gente mesmo. Com a merda do papel que a gente joga na rua e que vai entupir o bueiro e causar as enchentes. A gente também tem que se espantar com isso! Antes de me espantar com as coisas, começo a me espantar comigo, tão ocupada com o meu umbigo. Isso já é um princípio... Talvez eu faça um poema. Talvez eu nem faça nada. Talvez eu simplesmente diga um “bom dia” pra alguém que precise ter um bom dia... e isso já é um princípio. Alguma coisa acorda, nessa madrugada. Alguma coisa acorda com espanto. Em algum lugar, nessa correria, quando eu paro pra fumar um cigarro olhando pro teto do quarto, em algum lugar no teto do quarto, no meu céu sem estrelas, entre aquela mancha e aquele descascado, nesse lugar liso e branco, brotando do teto do quarto, há um espanto brilhando, um espanto acordado.

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