9.12.08

NOSSA MELHOR INFÂNCIA

para Fernando Blauth Klipel


Em maternidades distantes num longínquo 81,
nascemos irmãos numa só alma.
Destinos traçados nas palmas de mãos vazias,
que aprendemos a ocupar de copos e cigarros por não ter o que segurar.
Mãos das quais tudo insiste em escapar...
Mãos em que as linhas das vidas divididas se assemelham a cicatrizes antigas,
já rasas e quase apagadas, mas ainda lá, marcadas.
Temos esse sinal de nascença.
Essa mania de entrar no mundo sem pedir licença
e nunca sentir-se em casa em nenhum lugar.
Encontrar sua mão na minha é como regressar ao lar que nunca me foi abrigo,
e as memórias da infância que não tivemos são minha única realidade possível.
Nossa casa na árvore, para onde fugíamos quando tínhamos medo de algum perigo.
Passávamos dias e dias escondidos debaixo da cama pra jogar Resta Um,
e quando restava uma peça no tabuleiro, saíamos pra comemorar.
Corríamos por horas a fio só pra sentir o vento no rosto.
E nos dias de temporal, a gente corria pra fora de casa e se deixava inundar.
Nos dias de sol, era pedrinha no riacho e picolé na carrocinha do seu Chico.
Um dia a gente mascou tanto bubaloo, mas tanto, que ficou com dor nas mandíbulas,
e a gente queria rir e doía, e a gente ria, e ria, e ria...
A gente comia banda e bala juquinha, e uma vez você se engasgou numa bala soft que foi um deus nos acuda!
Foi a primeira vez que tive medo.
Eu queria dissolver a bala na tua garganta.
Dissolver do mundo tudo o que podia te engasgar, te fazer sofrer,
tudo o que podia me afastar de você.
Quando eu fraturei o braço você foi o primeiro a assinar o meu gesso.
Eu guardei o gesso na minha caixa de cartas.
Você lembra quando a gente dizia que ia viajar?
Eu ia pro meu quarto e você pro seu, de portas fechadas, e a gente se escrevia cartas, mandava por debaixo da porta.
Às vezes as viagens duravam muito e aí batia uma saudade danada e a gente marcava de se encontrar em um ponto do universo, que era a cozinha, porque a gente adorava experimentar novas gastronomias.
Tinha um país que fazia pão com manteiga e açúcar, e era o que a gente mais gostava!
A gente nunca comeu gafanhoto, mas a gente caçava formigas, assim, com o dedão, esmagava uma a uma no chão.
E eu adorava quando você me salvava das terríveis baratas!
Você sempre foi o meu herói, o mais forte, o mais bonito, o príncipe de todo conto de fadas.
E eu gostava de ser salva, e às vezes fingia medos só pra te ver enfrentar meus perigos.
Sem querer nós matamos os peixes do aquário e o pintinho da feira de filhotes.
Enterramos no jardim com uma cerimônia muito solene, choramos como duas carpideiras incontidas, e depois esquecemos os mortos pra jogar Atari.
A gente sempre quebrava o joystick fazendo força na curva do enduro, em que entrávamos com o corpo inteiro!
Eu gostava de comer jujubas com você vendo o dia amanhecer depois de tomar coca-cola escondido a noite inteira!
E andar de bicicleta, e soltar pipa, e jogar bola, e pular pogobol e pular corda!...
No nosso mundo não havia incesto e o meu primeiro beijo foi seu,
e eu fui sua namorada e você o meu,
e o nosso casamento era cada dia em um lugar.
O primeiro escolhido foi a Lua, e eu queria entrar de vermelho que é pro povo da Terra poder me avistar.
Mas o ônibus espacial demorava a chegar...
Aí a gente resolveu casar no jardim, que já era cemitério, então podia ser igreja.
A festa seria na casa da árvore, que é onde a gente ia morar.
Mas não ia caber todo mundo lá!
Que tal então se a gente casasse no Maracanã?! Descesse de helicóptero como o Papai Noel no Natal da Xuxa?! A gente antecipava os fogos do Ano Novo, e ia ser o grande acontecimento do ano! Ia passar na Retrospectiva 94 e ninguém nem ia lembrar da morte do Senna.
Droga, não queria lembrar do Senna, mortes me deprimem!
Prefiro planejar o nosso filho, a cor dos meus olhos com o seu brilho, um nome de anjo, com cara de diabinho, que vai herdar nossa casa na árvore, nosso Atari e todos os outros brinquedos!
Nosso primeiro filho veio no Jogo da Vida, nossa primeira casa e mais toda a rede de hotéis a gente comprou no Banco Imobiliário, mas bom mesmo era ganhar o mundo inteiro no War, que entrava madrugada adentro e a gente nunca se cansava...
A nossa vida inteira a gente foi ganhando como um jogo, montando as peças como um quebra-cabeças que faz surgir uma tela que a gente pintou, nosso jogo da memória inventada.
São as melhores lembranças que eu tenho da nossa infância.
Não você, meu pequeno anjo amoral perdido num céu de estrelas fluorescentes coladas no teto de um quarto vazio.
Não eu, sua pequena infernal, trancada no banheiro pra chorar escondida a solidão inevitável de uma estrela caída.
Nós dois, crianças de um mundo onde não há infância,
escondidos na dor do riso com o mesmo olhar de espanto.
E de repente, depois de tanto pranto, de tanta coisa, de tanta gente,
de toda essa infância perdida,
nossos olhares se cruzam numa esquina da vida.
E mergulhar nos seus olhos é como recordar tudo isso!
Lembrar tudo o que foi (que é tudo o que podia ter sido).
Voltar ao lar que nunca me foi abrigo e finalmente me sentir em casa,
que toda a dor da nossa vida foi uma bala soft agarrada na garganta e um braço quebrado, com um cafuné pelo susto e um gesso assinado de lembrança.
Talvez seja tarde para um pedido, talvez você já tenha desistido,
mas eu não mudei nossos planos.
(eu até guardei meu vestido vermelho)
Vamos pegar carona no próximo foguete
e você casa na Lua comigo?
(quero a cor dos meus olhos com o seu brilho,
quero amar nosso filho)

Um comentário:

Anônimo disse...

put's...essa é de longe a coisa mais linda que li na minha vidaa!!
parabéns...