7.12.07

Canudos - ainda e sempre

Um pesquisador argentino que faz trabalho sobre Canudos encontrou meu blogue não sei como e me pediu que lhe enviasse as minhas impressões da cidade. Me pus a escrever, escrever, escrever, reviver tudo e mais e segue abaixo o texto que lhe enviei:

Vou então relatar as minhas impressões sobre a cidade. Como estava lá durante um evento cultural de grande porte (a apresentação do espetáculo "Os Sertões", que se desenrola em 5 dias, com mais de 27 horas no total, mais de 40 atores, mais a equipe técnica e espectadores de fora que povoaram a cidade, shows na praça e tal), não vivi o dia-a-dia normal da cidade. Mas conversei com alguns canudenses. Posso te passar, por isso, algumas informações equivocadas ou imprecisas.
A minha primeira impressão, ao chegar, foi surpresa. A cidade é bem maior do que eu imaginava. E apesar do clima seco, tinha água abundante. O Açude Cocorobó também é bem maior do que eu imaginava. E há dois pontos para banho: a prainha e o jorrinho. Eu não saí da cidade. E podia ter ficado com uma impressão de abundância. Mas conversando com canudenses, soube que a seca assola mesmo as regiões rurais, algumas distantes 3 horas do centro, onde não chegam as águas do açude. Não há um sistema de irrigação.
A paisagem é árida. Fauna e flora típicas da caatinga. O povo ria quando nós, turistas da cidade grande, tirávamos fotos de cabras, burros e porcos passeando livremente pelas ruas. Come-se muito carne de bode e de carneiro (que eu provei e gostei).
As estradas de acesso à cidade são de terra e muito mal conservadas. Há poucos ônibus para Canudos. Há um direto de Salvador. Mas de Aracaju (de onde fui), tem que se pegar um ônibus pra Jeremoabo, e de lá, pega-se outro para Canudos. Enfim, o acesso não é muito fácil. A viagem é longa e cansativa (levei 9 horas de Aracaju pra lá). O ônibus, bem cacarecado, vai parando para pegar e deixar passageiros pelo caminho. A poeira que sobre da estrada, aliada ao sol forte, torna a viagem ainda mais penosa. Sente-se a garganta seca e áspera. A água que carrego na bolsa não ameniza, de tão quente que está, causa enjôo. Mas ao chegar, encontro um pôr do sol recompensador e cerveja gelada. Há muitos bares. E alguns cachaceiros.
Não há opções de cultura e lazer. No último dia lá, conversei com uma senhora que se queixava disso. Que após a saída da peça, restaria um vazio na cidade. O único divertimento que tem é ver televisão. O povo é muito conservador. No primeiro dia da peça, a cada aparição de um ator nu em cena, era um rebuliço na platéia. As pessoas comentavam escandalizadas e quase não se ouvia o que os atores falavam. Alguns até se retiravam. Como o tempo, o público foi sendo conquistado, foi se acostumando, foi se soltando e até participando das cenas em que os atores puxam pessoas do público para o palco. Achei lindo, realmente emocionante, esse movimento de conquista. Porque as pessoas lá não estão acostumadas com teatro, especialmente esse tipo de teatro, que mexe tanto com a libido. Mas a força da encenação, além das cenas de nudez e sexo, é tão grande, que conseguiu trazer o público para junto de si, que lotou o teatro todos os dias. Muitos inclusive ficaram de fora, infelizmente, por não conseguirem ingresso. Mas os shows com os músicos do grupo após a peça eram abertos, em praça pública, uma grande confraternização, coroada com a enorme ciranda no último dia formada por artistas, turistas e canudenses, abraçando a praça, um abraço em Canudos e em cada um de nós.
Foi um grande acontecimento na cidade. Mas como me disse aquela senhora, agora deve restar um vazio. E espero, sinceramente, que o povo de Canudos o preencha, gerando atividades culturais na cidade, sem ficar na dependência apenas do que vem de fora. Claro que pra isso é necessário também que haja investimento. A seca na cidade não é só geográfica, é também cultural. E também aí deve haver irrigação. E também aí as sementes plantadas devem ser regadas para não secarem.
Outra impressão ruim que tive foi o lixo espalhado pela cidade. Na peça, Zé Celso incluiu uma cena para conscientizar as pessoas sobre o recolhimento do lixo plástico. Mas aí eu fiquei pensando, não basta a consciência das pessoas, se não se tem uma política pública de recolhimento do lixo. E ao que parece, não há. Então o lixo fica espalhado pela terra seca do sertão sem se degradar, agravando a aridez da paisagem.
A cidade tem algumas lan houses, onde se acessa a internet. Mas não há sinal para telefone celular. O transporte, na cidade, se faz muito de moto táxi. A música que mais se ouve é o "arrocha". O CD de um grupo chamado Bonde do Maluco é o que mais toca nos bares. Até decoramos trecho de uma música, que virou quase que música tema da nossa viagem ("Não vale mais chorar por ele, ele jamais te amou - jamais te amou").
Por fim, o povo que se escandalizava no primeiro dia da peça já nem mais ligou no último dia, ao amanhecer, quando um grupo tomava banho nu nas águas do açude. E foi um belo amanhecer, o último, com os raios de sol esparramados por todo o açude. Enfim, viemos embora. Canudos lá ficou, com seu vazio a ser preenchido. E nós, que lá estivemos, como eles, que lá estão, e todo o povo brasileiro, que faz parte dessa história, devemos à cidade a sua reconstrução, o seu "desmassacre", para usar o termo zécelsiano. É o que acho mais importante da montagem de "Os Sertões". Não é uma peça para se assistir. É uma peça para se atuar. Tanto dentro, como fora de cena. Atuar no sentido de agir, promover uma ação transformadora. "Atuar pra poder voar" (trecho de música da peça).

"Meu cavalo tá pesado
Meu cavalo quer voar
Meu cavalo tá pesado
Meu cavalo quer voar
Atuar, atuar, atuar pra poder voar
Atuar, atuar, atuar pra poder voar"

3 comentários:

Anônimo disse...

Olá, Beatriz! Passeando pelo google achei o seu blog, vim parar até aqui por conta desse episódio inesquecível chamado ''Os Sertões''. Adorei a forma com a qual você descreveu cada momento da peça, dos momentos marcantes que aconteceram durante aqueles dias em Canudos. Você conseguiu transcrever o que ainda tá dentro de mim e não consigo expor, não caí na real, ainda não voltei, acho que fiquei por lá. Parabéns, adorei relembrar tudo aquilo através de suas palavras.

Beatriz Provasi disse...

Oi Julyana!
Que legal que eu sou uma "referência google" dos Sertões, vc é a terceira pessoa que chega aqui por lá! E se vc viveu Canudos sabe bem do que eu tô falando... Foi tudo tão incrível!... Será que a gente se esbarrou por lá? Vc é de onde?
Beijos!

Anônimo disse...

Pois é, depois que voltei dessa experiência, o que me conforta são essas coisas que encontro pelo google da vida. Pessoas compartilhando momentos, fotos e vídeos, fico aqui só matando as saudades e relembrando. Pode até ser que tenhamos nos esbarrado por lá, mas pela quantidade de gente, o difícil é lembrarmos uma da outra. Hehehe Sou de Fortaleza, fui com um grupo de 19 pessoas, encaramos 13h de viagem. São muitas histórias pra contar, ainda tô criando coragem pra escrever... Mas como disse, me identifiquei muito com o teu texto, foi bem o que vivi por lá.