14.9.07

DORME QUE OS SONHOS VÊM

Rita está em casa cuidando de sua filha de 3 anos e preparando o jantar. O marido chega, dá-lhe um beijo carinhoso, diz que chegou mais cedo do trabalho para ajudá-la a arrumar tudo para a visita de seus pais, que vêm para o jantar. Subitamente o chão some sob seus pés. Rita sente a velocidade da queda e a criança põe-se a chorar, suspensa no ar. Ela ouve o choro se afastar e tenta nadar para cima no vazio do abismo... Acorda assustada com porradas na porta.
Rita se levanta rapidamente e abre a porta. Canarinho entra como um furacão.

- Sabe que horas são?, pergunta.
- Heim?!
Rita ainda está atordoada.
- Hora de pegar no batente!
- Eu cochilei. Tive um sonho tão estranho...
- Não é hora de sonhar!
- Meus pais...
- Esquece seus pais!
- Eles vinham jantar...
- Vai se arrumar!
- Já vou, já vou.
Rita começa a trocar de roupa e se maquiar.
- Havia um chão que sumia... e eu estava caindo... tinha uma criança chorando... a criança era eu... e meus pais não apareceram...
- Só me faltava essa! Você não quer que seus pais apareçam agora para nos assombrar, né?! Termine logo com isso e vamos embora!
Seus pais não estavam mais lá. Haviam morrido há dois anos, quando Rita tinha 15. E mesmo quando estavam vivos, não estavam lá. Não como pais de verdade deveriam estar. Rita não tinha memória de seu pai sóbrio uma vez sequer na vida. Muitas vezes, encolhida no quarto, ouvia apenas os barulhos dos tapas. Sua mãe suportava calada. Certa vez não ouviu mais. Ele passou a entrar em seu quarto, mexer em seu corpo, e era ela quem agora calava. Com 10 anos seu pai a possuíra. E desde então, era sempre aquele horror, aquele bafo de cana, aquele corpo enorme e suado colado ao seu, aquela mulher calada no quarto ao lado. Nada podia ser pior do que aquilo! Sim, podia. E foi. Quando Rita tinha 13 anos, seu pai já acumulava dívidas exorbitantes de jogo e bebida. Seu Oséias mandou lhe cobrar, mas ele não tinha como pagar. Naquela noite chegou em casa com a cara toda arrebentada. E foi um alívio para Rita ele não ter entrado em seu quarto. No dia seguinte puxou a menina pelo braço:
- Hoje você não vai à escola.
A menina seguiu o pai pelas ruas sem nada compreender. Ele, então, bateu à porta de seu Oséias e lhe disse, apontando para a filha:
- Aqui está seu pagamento.
A mãe permanecia calada. Rita permanecia calada. Mas não podia mais suportar, além do pai, aquele velho nojento com quem tinha que se deitar. Até que conheceu Canarinho e os dois começaram a namorar. Passado um tempo, Rita resolveu contar a ele o que se passava. O rapaz foi tomado de revolta contra os pais da moça, mas o que ela poderia fazer? Foi então que os dois começaram a planejar tudo. A morte de seus pais. Nunca mais deitar-se com aqueles velhos nojentos! Nunca mais! Nunca mais ouvir ecoar o silêncio de sua mãe! Nunca mais! Canarinho comprou o veneno que Rita despejou no jantar. Naquela noite não teve fome e foi se deitar mais cedo. Naquela noite ninguém entrou em seu quarto.
Seus pais não estavam mais lá. Canarinho a conduzia pelo braço enquanto ela tropeçava nos saltos:
- Ei, vá mais devagar!
- Devagar é o caralho, tenho contas a pagar! E você já tá meia hora atrasada porque deu agora pra sonhar!
Chegam à Copacabana, onde um cliente já a aguardava.
- Desculpe o atraso. Taí a moça. Garanto que é material de primeira!
O homem entrega a Canarinho um maço de notas. Ele as folheia satisfeito.
- De primeira!
E vai se afastando.
Rita vai para a lida com o cliente que lhe foi destinado. Ainda pensa no sonho que teve, tentando visualizar algum significado.

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