9.6.06

uma insônia, um conto

Às vezes eu escrevo demais, me perco no meio e não sei terminar. Mas como já tá feito, deixa publicado aí. Nunca consigo retomar no dia seguinte pra tentar melhorar. Então, fica como exemplo do que pode fazer uma escritora sem método numa noite de insônia... (e sempre me resta a sensação de que podia ter ficado bom se eu me dedicasse...)

Apenas um scrap no orkut...

A vida de Elisa andava monótona demais. Ela acordava todo santo dia no mesmo horário, fumava um cigarro tomando um café bem forte enquanto despertava para o mundo, tomava banho, escovava os dentes, se arrumava e ia pra faculdade, da faculdade pro estágio, do estágio pra casa, via uns trechos de telenovelas e telejornais enquanto jantava, às vezes tinha que estudar alguma matéria antes de dormir e mais um dia de sua vida ia por água abaixo. Final de semana sempre nos mesmos bares com as mesmas amigas falando das mesmas coisas, às vezes um filme no DVD ou no cinema. Não tinha namorado, mas pegava um ou outro carinha interessante de vez em quando, o que lhe satisfazia a necessidade biológica e existencial de sexo. Nada que alterasse a sua rotina de mulher independente de vinte e poucos anos na casa dos pais. Continuaria vendo passivamente seus dias escorrerem feliz da vida. Provavelmente seria efetivada no jornal em que estagiava, tão logo concluísse a faculdade. E assim viveria na mais completa harmonia até seu último fio de vida descer pelo ralo.
Ralo era aquele dia de trabalho, em que não precisava ralar pra concluir nenhuma matéria. Fechou o texto tão rápido que ficou lá, na frente do computador, matando as horas na internet. Leu todos os e-mails, respondeu os que demandavam respostas, deletou os outros. Deletou um monte. Quanto lixo! Pensou. Tem gente que acha que eu não tenho mais o que fazer, pra ficar lendo esse tanto de spam, corrente, abaixo-assinado, menininha de três anos precisando de transplante de medula ou sei lá o quê, floresta amazônica ameaçada pelo imperialismo norte-americano, piadinhas e mais um monte de porcaria que só serve pra encher a caixa dos outros. Foi dar uma olhadinha no orkut, que tinha uns recados lá. Não era mais fácil mandar direto pro e-mail? Ah, mas aí não vai ser público! As pessoas precisam do reconhecimento alheio pra sentirem que existem nesse mundo. Deve ser. E lá estava o recado da Mari, combinando o que não precisava da menor combinação, o mesmo bar de sempre na sexta à noite. Vamos lá. E uns recados de spam, porra!, esse spam do orkut também é um saco! A vida é um spam atrás do outro. Haja saco! E um recado de... quem é esse Gustavo? Falava de umas coisas de que ela nem tinha idéia. Que foi legal me conhecer e etcétera e tal. Olhou a foto com atenção. Não conheço esse Gustavo. Entrou na página dele. Gustavo Meirelles. Gustavo Meirelles? Não me diz nada. Ele nem diz quem é, pede pra deixar scrap antes de adicionar e só. Porra, quais são suas paixões, suas atividades, seus esportes, livros, filmes? Assim fica difícil identificar. Tá, é do Rio, solteiro, 25 anos, fala português e daí? Não conheço os amigos dele. As comunidades dele não me interessam. Acho que houve um engano. Com certeza ele deixou recado pra Elisa errada. Gustavo, recebi um recado seu no meu orkut, mas não o conheço. Acho que houve um engano. Vc deve estar procurando uma outra Elisa. Não sabia se deixava beijos, abraços ou terminava assim. Não vou deixar beijos ou abraços para alguém que não conheço. Mas terminar assim fica até meio grosseiro. Boa sorte! Boa sor Boa s Bo apagou. Não, boa sorte parece irônico. Então... Espero que a encontre. Parou, olhou, releu e sentiu que faltava alguma coisa. Ah, vai... Beijos da Elisa errada. E foi. E como não tinha o que fazer, ficou lá por um tempo ainda, vasculhando as comunidades dele. Achou o colégio em que ele estudou, Pedro II do Humaitá, a faculdade era UERJ, que curso, que curso? Ciências Sociais. Mas ele não tem cara de quem fez ciências sociais. Um tipinho meio playboy. Ah, mas definitivamente, não era playboy. Um cara que lê Fernando Pessoa não pode ser playboy! E curte cinema europeu! E Woody Allen! Woody Allen é foda! Até que ele tem umas comunidades boas. E assim foi descobrindo seus gostos, os lugares que freqüentava, seus ódios e seus amores...
No dia seguinte, antes mesmo de abrir o e-mail, e no meio de uma matéria chata que estava redigindo para o jornal, entrou no orkut, curiosa para ler seus recados, os seus dele, e não dela. E vendo os recados dos amigos para ele e dele para os amigos (sim, vasculhou também as páginas dos amigos dele!), descobriu seu programa no próximo fim de semana. A resposta que reservou a ela foi um seco Desculpe o engano. E ela bem que pesquisou, mas não conseguiu encontrar a Elisa para quem se destinava o recado. Talvez ela não tivesse orkut. Concluiu a matéria e do estágio para a casa, sacou o celular da bolsa e ligou para a Mari. Mari, mudança de planos. Sexta vai ter um show imperdível no Circo Voador. Combinou. A Mari se opôs a princípio, porque nunca tinha ouvido falar na tal da banda, Moxambó ou qualquer coisa assim, esqueceu o nome logo depois que a amiga pronunciou, mas a Elisa era foda, falava com tanta convicção que sempre convencia qualquer um do que queria. É claro que ela pesquisou sobre a banda no google e já sabia a trajetória toda de cor, estilo, repertório e tal. A Mari nem desconfiou que a amiga também nunca ouvira falar na tal banda. Então tá, lá vamos nós pra uma aventura na Lapa. E foram.
E a Lapa lotada e a Elisa olhando de um lado pro outro um pouco angustiada. Contava tudo pra Mari, mas isso não contou porque ia parecer maluca. Como assim?! Não contou. E nem ia. Só se perguntava como ia reconhecer aquele moleque de uma foto minúscula de orkut no meio daquela multidão. Nem era uma multidão tão grande assim. Mas pra ela era ainda maior. E cada rosto que passava ela tentava imaginar reduzido numa tela de computador. Não, não era ele. E via o próximo, e o outro, e o outro, e não era ele, nenhum deles era ele. Entraram no Circo antes do show começar. E vamos dar um rolé! Dois chopes, por favor. Empunham seus copos e põem-se a caminhar, entre os holofotes que iluminam as copas das palmeiras e cegam os passantes. A Mari reclama. Mas a Mari reclama de tudo. Elisa é pura ansiedade, fotografando em digital com os olhos cada cara que passa. O show vai começar. Começa. E até que é bom, pensa Mari. E Elisa não está nem aí pro show, mas dança. E os fãs na frente cantam juntos umas letras que elas nunca ouviram. O ritmo embala, todos bebem, uns fumam um e o Circo pega fogo! Vou pegar um chope, sai Elisa deixando a amiga só por uns instantes. E como um instante fotográfico, click, ela ouve seu nome. Elisa, numa voz de homem. Elisa. Sei lá, sumiu, e também, foda-se, vai ver que não tinha nada a ver. Seu nome numa voz de homem, falando da Elisa incerta. Ela tá na fila do caixa e não pode se virar. Não posso me virar, ai meu deus, é ele. Compra a ficha e quando tá saindo, olha meio de lado. É ele e ela sai. Se escora no balcão do chope perdida, perdida, porque nem sabe o que quer. Porque, que maluquice, o que eu poderia dizer a ele?! O que é que eu tô fazendo aqui? O cara entrega o chope e ela pensa que quando se virasse ele estaria vindo e se esbarrariam e se diriam qualquer coisa, mas o caminho está livre e ela volta para a companhia da amiga. Não o viu mais e nem o procurou. Agora, na verdade, tinha medo de olhar em torno e dar de cara com ele, porque certamente sua expressão mudaria e ele podia perceber e ela pareceria louca porque ele nunca a viu mais gorda. Curtiu o resto do show um pouco tensa. A Mari adorou e falava pra caralho, que saco!, mas era bom, porque assim ela podia se perder em si mesma como se prestasse atenção no monólogo da amiga. E se perdia. Gustavo não lhe saía da cabeça. Aquela voz. Aquela imagem de relance. E se ele lhe recitasse Fernando Pessoa? E se vissem juntos um filme do Woody Allen? E imaginou encontros, e diálogos possíveis entre os dois, que levassem a beijos, que levassem a sexo, que levassem a qualquer lugar, mas que existissem! Chegou em casa cansada, meio bêbada, e logo adormeceu.
Acordou seca de ressaca e haja água! Não fumou seu cigarro, não tomou seu café. Nem o rosto lavou. Foi direto pro orkut. E lá estava ele, sorrindo como sempre, como se nada tivesse acontecido. Estava lá imóvel e indiferente à sua presença. Tão perto e tão longe. Tão nada seu, tão o amor da sua vida. Ela sorriu porque ele estava lá, mas não sabia o que fazer. Encontrou a sua Elisa? Sabia que não, mas podia perguntar. Nem todas as Elisas são iguais.... Soaria mais enigmático. Ou mais idiota. Ai, que idiota, melhor não escrever nada! E ficou contemplando a tela. Por fim, acendeu um cigarro. E pôs-se a escrever. Gustavo, adorei o show! Valeu pelo convite! Vamos nos ver mais vezes... Adoro a sua companhia. Não, adoro a sua companhia não. É piegas demais! É... Me liga. Beijos! Mandou o recado e fechou a tela. Quase satisfeita, quase arrependida. Não tenho nada a perder, então, foda-se. E tentou não pensar mais no assunto, porque nada mais podia fazer, além de aguardar a resposta imprevisível para aquele recado insólito.
E eis a resposta insólita, que veio no dia seguinte: Poxa, Elisa, achei que ia continuar fingindo que não me conhecia. Eu já não tava entendendo nada. No show, vc sumiu. Nem olhou pra minha cara direito. Mas que bom que gostou! Essa banda tem uma música que tem tudo a ver com a gente, vc percebeu? Eu vou te ligar, assim que me der o seu telefone. Ah, te add, ok?! Bjs. Elisa ficou paralisada. Leu, releu e não entendeu nada. Será que a outra Elisa tava no show? Será que ele a convidou? E ainda está achando que eu sou ela? Só pode! Uma música que tem tudo a ver com a gente. Que música, meu deus?! Que “a gente”?! O que que eu faço agora? Toca o telefone e era a Mari, inconformada com a amiga que andava escondendo dela as aventuras amorosas. Quem é esse Gustavo que te deixou recado no orkut? Bem que eu vi que você tava esquisita no show. Tá de casinho novo e não me contou nada?! Que filha da puta! Falou o filha da puta num tom carinhoso que só uma amiga de muitos anos tem para xingar a outra. A Elisa começou a rir. Teve uma crise incontrolável de riso. Você não vai acreditar! E contou a história toda. Não é possível! Esse cara te conhece de algum lugar. E mandou essa pra se aproximar, tá na cara! Não tinha nenhuma outra Elisa, amiga. Eu tenho certeza que isso é jogada. A Mari sempre tinha teorias pra tudo, vivia cercada de certezas que se firmavam de uma hora pra outra e se afirmavam sobre tudo. A Mari estava certa. Ou não. Mas estava certa de que estava certa. E a Elisa ficou com aquilo na cabeça. Será?! Achou o jogo divertido e se jogou de vez. Adicionou o Gusvato e deu seu celular.
Passou um dia, dois, três... e nada do Gustavo ligar! E quando ela já pensava que a Mari estava errada e que ele encontrara a Elisa certa, a musiquinha psicodélia do seu celular a faz sobressaltar. É ele. E era. Um convite. Um encontro marcado. E nem uma palavra sobre os dois. Quem eram, como se conheciam, nada. E se ele pensar que está falando com uma Elisa e eu sou outra?! Vai ser uma decepção quando me vir! E se for em mim que ele realmente pensa?! Então, no mínimo, deve me achar louca! Eu nem o conheço... De fato, não conhecia. Na faculdade de jornalismo lhe ensinavam a sempre consultar mais de uma fonte. E tudo o que sabia de sua vida tinha como única fonte o orkut. Uma única fonte. E nada confiável... E se ele não se chamasse Gustavo? E se não lesse Fernando Pessoa? E só visse enlatados hollywoodianos? Tinha cara de playboy. Mas curtia o som de uma banda desconhecida, um rock meio maracatu funk samba pop, sob a lona do Circo Voador. Sei lá... E que se foda! Vou pagar pra ver. E foi.
Hoje eles moram juntos em Santa Teresa e tem um filho: uma produtora de eventos culturais de que eles cuidam com o maior amor. Rotina é uma palavra que não se encontra em seus dicionários. São tão criativos que já criaram várias versões para o primeiro encontro, e a cada uma corresponde uma música daquela banda, que tem tudo a ver com eles! E já se encontraram tantas vezes um no outro que perderam as contas. A única certeza que eles têm é de que não se conheceram no orkut. A Mari até hoje está certa de que estava certa. Mas como sempre diz, o médico mandou não contrariar. Eles não viveram felizes para sempre, mas vivem cada dia de suas vidas como se fosse o último, o único, o próximo. Ah, e o Gustavo sempre lê Fernando Pessoa, e gosta particularmente deste poema: “O poeta é um fingidor. / Finge tão completamente / Que chega a fingir que é dor / A dor que deveras sente. // E os que lêem o que escreve, / Na dor lida sentem bem, / Não as duas que ele teve, / Mas só a que eles não têm. // E assim nas calhas de roda / Gira, a entreter a razão, / Esse comboio de corda / Que se chama o coração.”

2 comentários:

Anônimo disse...

Que demais essa historia! E" de verdade mesmo? Mas e ai? Ele conhecia ela de onde?

Beatriz Provasi disse...

Não se sabe. Há várias versões para o fato. Estou inclusive pensando em criar uma nova versão para o final, em que tudo na verdade era uma grande armação da Mari, que era amiga de um amigo do Gustavo. Os dois acharam que os amigos tinham tudo a ver um com o outro e criaram a situação. Sei lá como. Mas o encontro da Elisa com o Gustavo foi um fracasso de público e de crítica, não deu o menor ibope. E quem termina junto no final é a Mari com o amigo do Gustavo, o... Jonas. Jonas era o nome dele. Eles acabaram se aproximando durante a armação e rolou um clima. A Mari acabou contando a verdade para a Elisa, que ficou furiosa, por ter feito papel de otária. Aí, pra se vingar, começou a deixar uns recados comprometedores no orkut da Mari. O Jonas leu, é claro. E achou que a Mari estava traindo ele com um amigo da Elisa. Eles brigaram, romperam o namoro. Elisa e Mari nunca mais se falaram, se odeiam até hoje, não podem nem ouvir falar no nome uma da outra. Gustavo, mais sensato, saiu do orkut. Fernando Pessoa lhe parecia uma leitura mais agradável do que scraps. E continua freqüentando uns shows du caralho no Circo Voador!...