3.7.07

O que há no final do arco-íris?


A chuva parou. Que bom que era verão e as chuvas eram fortes e rápidas. Ainda se podia aproveitar a noite. Fazia calor. Quando chove, um bafo quente sobe do asfalto e transforma a cidade numa enorme sauna a vapor. Ricardo pôs um regata bem fresca, um pouco justa, e um jeans básico. Sábado era o dia das melhores noitadas. E o pai sempre lhe dava um dinheirinho a mais... para o motel, caso arrumasse uma gata. O pai falava "gata" de maneira forçada, pra parecer cúmplice de sua juventude, mas sempre usava umas gírias do século passado. Se tivesse uma filha, talvez lhe desejasse um "pão-de-ló". Mas era bem mais provável que lhe impusesse a castidade, com a formação machista que tinha e de que se orgulhava. Mas Ricardo não queria saber do machismo nem da cumplicidade forçada do pai. Apenas pegou o dinheiro, deu até logo e foi curtir a noite na companhia de seus amigos. Iam a uma boate das mais badaladas.

A madrugada já ia alta nas pistas do Rio. Luzes, som alto, embriaguez, corpos dançando. Tadeu já tinha tomado várias e mal se agüentava em pé, mexia com toda mulher que passava, pegava nos cabelos, falava gracinhas no ouvido quase caindo sobre as moças que se desviavam e desvencilhavam. Até que puxou uma pelo braço e veio junto o namorado tomar satisfação.

- Qualé, meirmão?! Tá querendo arrumar confusão?!
- Ih... o cara tá pensando que é macho! Tu é, é corno, que essa aí já rodou na mão de geral!...
A risada de Tadeu logo se interrompeu com um murro na cara, que o lançou ao chão. Tadeu se ergue cambaleante, mas parte pra cima do cara. Abre uma roda na pista, as mulheres gritam, alguns homens se aproximam pra ver. Tadeu apanha mais que bate, mas quatro amigos seus entram na confusão e o cara acaba levando a pior. Os seguranças da boate chegam pra separar e põem Tadeu e seus amigos pra fora.
- Caraca, rapá, tu viu a cara dele?!, exclama o Maneco já a caminho do carro.
- Deu pra partir umas costelas!, responde o Cacau.
- O nariz também já era!, complementa Cabeção.
E todos dão boas risadas. Quem dirige é o Felipe, o dono do carro, que é ainda o mais embriagado. Canta pneu e segue pela orla avançando os sinais à toda.
- E agora, maluco, vamo zoar aonde?! Eu tô na maior pilha!, é o Maneco quem fala e todos concordam, as vozes se confundem e ninguém mais sabe quem fala o quê.
- Ali, ali, ali, um bando de viadinho!, um deles aponta.
- Reduz, reduz, vamo dar um corretivo nessas bichas!, sugero outro.
- Pára naquela rua ali, vamo ficar na espreita.
O carro passa pela entrada da boate e vira numa rua, todos descem e aguardam de olho na esquina. Ricardo se despede dos amigos e segue naquela direção sozinho.

Ricardo não vê de onde surgem aqueles caras que o cercam. Sente os golpes, um após outro, tentando se desvencilhar inutilmente, balbucia alguma súplica, mas é tudo muito rápido, socos, chutes, xingamentos, palavrões, empurrões, se desequilibra, cai, a cabeça no meio-fio e nada mais.

- Ih, rapá, sujô, sujô!
- Vamo dar o fora!
Os cinco pulam pra dentro do carro, que canta pneu e some pela noite, deixando uma cabeça espatifada para trás.

Demétrius é quem prepara tudo para o enterro do filho, muito reto, muito digno, mas visivelmente abalado. O luto se abate sobre sua família. Demétrius carrega em si um luto redobrado. Não é apenas um filho que ele enterra. Enterra junto sua reputação, sua moral. Aquela morte brutal, naquelas condições, não era só triste, era humilhante. Demétrius jamais aceitaria a homossexualidade de um filho em vida. E não era agora, depois de morto. Se ele não tivesse ido àquela boate... Se não andasse com aquela gente... Se não tivesse esse comportamento imoral, nada disso teria acontecido. De certa forma, culpava pela morte do filho mais a sua homossexualidade, do que os rapazes que o atacaram. A ocorrência fora feita por uma prostituta que passava no local e viu tudo. O delegado foi quem informou ao pai. A prostituta faria o reconhecimento dos rapazes, com mais algumas testemunhas, que reconstituiriam a trajetória deles naquela noite. A imprensa exigia justiça. O pai não queria gravar depoimento e proibiu o assunto a qualquer membro da família.

A imprensa insiste no caso, quer vender notícias sensacionalistas. A polícia insiste no caso, quer a publicidade de sua eficiência. Demétruis quer dar o caso por encerrado. Não lhe faz bem esse tipo de publicidade, um filho gay. Aquela prostituta, que interesse teria no caso? O que uma mulher da vida tinha a ver com seu filho, com sua família? O que aquela vadia pensa que está fazendo?! Resolveu chamá-la e oferecer-lhe uma boa quantia para que se calasse, para que sumisse do mapa, para que deixasse a memória de seu filho em paz, para que o deixasse em paz!

- Engraçado, diz a moça, o pai de um dos rapazes também me procurou, também queria comprar meu silêncio. Era pai de um assassino. Mas o senhor...?! O senhor é pai da vítima!...
- Pois aceite o dinheiro dele, e também o meu, aceite o dinheiro de todos os pais de todos os garotos. Não creio que eles tivessem intenção de matar. Estavam apenas se divertindo às custas de um pervertido. Não merecem que suas vidas sejam destruídas. Já basta a minha. Um filho gay não é algo que se ostente por aí. Já basta um filho morto! Não quero mais saber dessa história! Vejo como as pessoas me olham na rua, no trabalho, pessoas que me respeitavam... Todos sabem, entende? Sabem o que meu filho fazia. Aceite o dinheiro e dê o caso por encerrado. A polícia não terá com o que trabalhar. E a imprensa logo esquecerá, vai arrumar outro pra atormentar.

A prostituta hesita. Não acha justo que a morte do rapaz fique impune. Meu Deus, não é nenhum crime ser gay! Pobre rapaz. Vítima da brutalidade humana. Morto. A prostituta. Vítima da brutalidade humana. Viva. Diante da possibilidade de arrumar sua vida. Era um bom dinheiro, este mais o do outro. Dava pra sair das ruas. Hesita. Emudece.

- E então?, indaga Demétruis.
Ela estende a mão. Afinal, que interesse teria no caso? Dá de ombros e se vai.

Não demorou para que a polícia esquecesse o caso. Não demorou para que a imprensa esquecesse o caso. Demétrius jamais esqueceria. Mas estava mais aliviado.
Naquela tarde choveu pouco. Já era outono. E logo abriu o sol, formando no céu um imenso arco-íris. Neide não se prostituía mais. Comprara uma casinha modesta, mas bem ajeitadinha. E de sua janela contemplava o arco-íris no céu, sendo inundada por uma doce alegria que poderia chamar de felicidade.
Logo anoiteceu. E com seu carro Felipe pegou um a um em casa: Tadeu, Maneco, Cacau e Cabeção. Era sábado. Dia das melhores noitadas do Rio!...

3 comentários:

Anônimo disse...

caramba, beatriz!
é por isso que sempre devo passar por aqui, adorei! (novidade...)
seus contos são muito bons e não foi o primeiro que leio!

beijins literários

Anônimo disse...

ARRASOU!!!

Lindo,lindo,lindo...Amei;)


E o q mais temos em comum além da noite,da poesia e do cinema,q vc ia me dizer em off?
Fiquei curiosa...


Bjitos=************

Beatriz Provasi disse...

Valeu, Saulo! Ratos na quarta?!
Valeu, Carol! Eu não tenho o teu e-mail. Mas vc saberá. Beijos!