1.11.11

MAIS UMA VEZ OSCAR

Nandito,
Hoje, ou outro dia, não lembro bem, passei horas trancada num sótão desconhecido. Era escuro e empoeirado, como todas as coisas desconhecidas. Muitos objetos esquecidos de sua utilidade ali repousavam. Não era um repouso tranquilo, era mais como um congelamento de queda. As coisas se penduravam por um fio, umas agarrando-se às outras para não cair, desesperadamente; porém imóveis. Não sei quanto tempo se passou. Mas eu não estava presa, não. Era mais uma liberdade poder se trancar no sótão, sabe. Eu era como aqueles objetos esquecidos de sua utilidade. Esquecida de minha utilidade, congelada no momento da queda, suspensa. E então eu era livre como cada objeto que já não se pode usar. Livre como uma bicicleta quebrada. Livre como um disco arranhado que se recusa a tocar. As coisas descartadas, esquecidas, são as únicas coisas verdadeiramente livres no mundo. As que se rebelam contra a sua função e conquistam o direito de não servir pra nada. Eu era muito ingênua, meu bem, quando subíamos na nossa casa na árvore e eu apontava os pássaros e as borboletas como ideais de liberdade. Verdadeiramente livre é um isqueiro sem gás. Perder o gás não é a morte do isqueiro; não, muito pelo contrário!, é a sua liberdade. A partir dali ele deixa de ser útil, e começa a viver. Então eu passei muitas horas trancada no sótão com coisas vivas e cada coisa conversava comigo, me contava a sua história, a verdadeira história de sua vida, de como começou a viver, quando conquistou o direito de não fazer nada. As coisas de que faltavam pedaços me confessavam, sim, sentiam falta dos pedaços partidos, sentiam dor nas estruturas retorcidas ou algo do tipo. Mas um relógio sem ponteiros me disse: é o preço que se paga para ser livre. E me disse comovido e orgulhoso: eu não marco as horas; eram elas que me marcavam. E me disse isso com uma lágrima parada nas 3 horas, 47 minutos e 3 segundos. Eu não marco as horas, eu sou livre. Mancando sobre meio ponteiro de segundo, mas com um sorriso firme. Foram horas magníficas, essas incalculáveis, que passei na companhia desses objetos obsoletos. Sei que você gostaria de conhecê-los, você que sempre me perguntou - o que é ser livre? E eu sempre disse cada hora uma coisa, e você sempre fez diferente do que eu disse. E foi sempre assim que a gente planejou as nossas viagens, né? Um desplanejamento estratégico, eu diria. Nandito, a gente precisa ser como uma mesa sem os pés. (E quando não há chão, quem precisa de pés?!) Um avião sem asas, de turbinas quebradas, é mais livre que todos os pássaros que fazem ninhos e espalham sementes pelo caminho. Os aviões quebrados incomodam demais na grandiosidade da sua liberdade. Não podem ser trancados no sótão, escondidos. Estão ali, exibindo descaradamente a sua liberdade à vista de todos; triunfantes. Inúteis. Eu os admiro. Quero viajar num avião quebrado, a que darei um nome como se dão aos barcos: Oscar. Como o nosso peixe que morreu, e tornou inútil e livre o nosso aquário. Oscar manda lembranças. Mais uma vez, Oscar. Em todas as viagens. Sinto sua falta, menino. Minha liberdade é mais livre com a sua.
Beijos quebraditos,
Beatritche


PS. Carta da série "Oscar manda lembranças", que é um livro que eu não termino e não publico, dedicado ao meu amigo Fernando Blauth Klipel.

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