26.5.12

salva por um vira-lata

tem aquele cachorro preto
que passa por baixo das mesas
indiferente
esperando que algo caia
para o seu banquete
ele tem mais a ver comigo
do que essa gente
sobre o palco
dizendo que “a arte salva”
dizendo poemas como um pastor na igreja
eu desvio os olhos do palco, encaro a cerveja,
procuro o cachorro preto,
quase me enfio embaixo da mesa,
estou incomodada.
se eu quisesse ser salva
tinha aceitado a tempo os 10 mandamentos
e um deus rondando a minha santa ceia
sempre tentaram me enfiar salvações goela adentro
eu sempre cuspi de volta
não quero nada disso
só quero vagar com a liberdade desinteressada
desse cão vadio
– só isso.
e novamente passa o cão preto
por baixo da minha mesa
olho cúmplice pra ele
- ele me salva.

22.5.12

saldo do estrago

um joelho ralado
e uma certeza:
nem tudo cura com merthiolate.

o frio pulou o muro
faz sempre mais frio aqui dentro
- e de que me servem tantos casacos?

ainda tenho uns passos de dança
e aquele sonho de valsa
arco-íris de fim de chuva
sempre um sorriso guardado
pra jogar por cima
do estrago

18.5.12

Fake


Eu sou fake, muito fake. Meus poemas apaixonados são uma piada. Exageradamente derramados, melecando tudo de uma gosma cor-de-rosa. Não, eu não amo, ninguém ama tanto assim. É só um jeito de viver numa montanha-russa. Um parque de diversões dentro do peito. Fazer de tudo muito susto ou muito riso; nada pela metade, morno, médio, meio... tudo eu intensifico. Eu brinco de roleta russa com as emoções. Às vezes o tiro me pega em cheio, mas quando não - já sentiu o gosto de estar vivo depois de apertar o gatilho? Eu invento esses jogos todos. Flerto com o perigo. Trapaceio no pôquer com a morte. Não suporto viver de tarjas pretas e sonos tranquilos. Há pessoas que se mutilam para ter sensações. Há todo tipo de maluco por aí. Uns atrás de morfina; outros de um passaporte para o inferno mais próximo. Os zumbis à solta e a gente tramando jeitos de se sentir vivo. Ou então se acomoda a injetar anestésicos diariamente. Tem sempre alguém pronto pra fazer isso por nós, como o carrasco que abria o alçapão do enforcado. Só que com bem menos espetáculo. A gente nem vê e quando percebe já morreu. Eu me jogo logo no fogo ou no céu. Os medíocres se contentam em jogar-se no sofá e contar estrelas na TV. Eu construo foguetes e brinco com explosivos. Invento histórias mirabolantes e paixões desmedidas. Eu faço tudo isso e é tudo fake. De tanto colar máscaras no meu rosto é impossível arrancá-las sem rasgar a carne. Acaba que muita mentira vira verdade. Tanto faz. O que vale é se sentir vivo. Uma dose de qualquer coisa forte, sem gelo. É sempre a última dose. Eu sempre puxo o gatilho.

17.5.12

Ratos & caminhões de lixo

queria andar mais distraída
para não perceber
o rato morto na calçada
eu vejo tudo, sabe.
- “deixa disso, menina, amanhã o gari vem aí e limpa.”
aí o gari também entra na minha dor
com todo o lixo que tem que cheirar todo dia
é difícil ver essas coisas, sabe.
eu pulo o rato morto e continuo andando
eu sempre tento ultrapassar o caminhão de lixo
pra me livrar logo do cheiro
a gente é assim mesmo, sabe.
esquece rápido

7.5.12

Liga & desliga

eu precisava mesmo
de um botão de liga&desliga
um controle universal
que servisse para o sono
e para o coração
sempre esqueço os óculos escuros
no porta-luvas do carro
amanhece demais nos meus olhos
sempre esqueço o coração
no lugar errado
nunca encontro no porta-luvas
junto com os óculos escuros
um botão de liga&desliga resolveria
mas só tem o tal botão no rádio do carro
e eu ponho John Mayall
pra lembrar do lugar errado
e de alguma forma
eu pego a coisa de volta e enfio no peito
porque as músicas não
você não pode me roubar o som

6.5.12

Todos esses cães latindo no peito

para Caró Lago e Juliana Hollanda

alguns sorrisos ignoram os pântanos
toda felicidade enfia os pés na lama
a alegria pode ser suave
doce e cor-de-rosa
é muito bom ter em cortar cebolas
a única razão pra chorar - falei isso
enquanto ela enchia as cebolas de sorrisos
e era muito bonito.
há coisas leves e mansas
tem uma calma aí
e é muito bom isso, muito bom, eu disse.
felicidade não;
é outra coisa:
a felicidade enfia os pés na lama e goza
a felicidade é feroz
quando ela te pega e te beija na boca
é aquele beijo de tirar o fôlego
a terra treme e o mundo vai desabar
mas a gente não tá nem aí, que desabe!
é por alguns segundos disso que todo o inferno vale.
toda a fúria do mundo concentrada num beijo
e todos esses cães latindo no peito...

5.5.12

Pombos & bilhetes


a gente tem essa mania
de alimentar os pombos
e rabiscar bilhetes suicidas
os pássaros são possíveis, eu disse
ele não entendeu de onde eu havia tirado isso
eu disse que os pássaros são possíveis
mas tem sempre esse tigre afiando as garras no meu peito
ele riu, ele sempre ri quando não entende
felinos são assim mesmo
afiam as unhas em qualquer lugar
pé da cortina, boca do estômago, braço do sofá, tanto faz
mas é que tem uns lugares em que dói mais, eu disse
ele deu um gole na cerveja e não disse nada
ficamos olhando em silêncio
os pombos na calçada
- pássaros impossíveis -
e pensando em bilhetes
de despedida

temporal

você invadiu o meu temporal com tantos guarda-chuvas
que quase esqueci o quanto eu gostava
das águas selvagens
desejei teto e casaco
recolheu os meus cacos
com tanto cuidado pra não cortar as mãos
tão cheio de dedos, tão cheio de luvas e medos
eu jamais poderia prever
que o corte seria você
antes tivesse colocado os cacos de vidro
sobre o muro
como naquelas casas antigas
antes tivesse mantido
o cão feroz dentro do peito
e a minha criação de galos de briga

nunca mais ninguém me proteja
sou eu que provoco a chuva
e as gotas são lindas