26.10.11

INCÊNDIOS

Tem um ônibus em chamas no meio da rua. E um homem sentando num canto, obstinadamente queimando papéis. Me concentro no homem queimando papéis. A obstinação com que queima, todos os tipos de papéis, documentos, cartas, jornais, fotos, quase mecanicamente, como que impelido por uma força maior ou porque simplesmente tem de fazê-lo, como se fosse o seu emprego; a obstinação e seu gesto automático, sem qualquer emoção, retêm a minha atenção. O ônibus em chamas some na euforia de bombeiros, passageiros, transeuntes, jornalistas, fumaça, carros, buzinas, sirenes. O ônibus em chamas desaparece no espetáculo de sua abundância. Ele não tem a menor importância diante desse homem que queima papéis, num ato vulgar e sem paixão. Um ato gratuito, por assim dizer. E quase clandestino. Não há qualquer relação entre o homem que queima papéis e o ônibus em chamas. São personagens de espetáculos distintos, que não se comunicam. Sequer o fogo é feito da mesma matéria, ou quase isso. Eles se ignoram mutuamente. Não estão no mesmo espaço, e sequer no mesmo tempo – um fogo se consome rápido, enquanto o outro é mais lento; um queima para fora, o outro pra dentro. Um abismo os separa. E o ônibus já não existe. O homem continua obstinadamente queimando papéis; bilhetes de passagens, panfletos de eventos, cadernos escolares, calendários, agendas, calma e mecanicamente. Exerce sobre mim um tal fascínio que me sinto instada a perguntar-lhe “por quê?”. Mas eu apenas passo calada, preenchida agora por uma forte sensação de interrogações. De que me serviriam respostas ou conclusões? O homem que queima papéis continua lá, ou já se foi, não sei mais. O ônibus ressurge mais tarde num telejornal, onde parece mais real. O homem que queima papéis nunca esteve lá. Eu não estive lá. O ônibus em chamas - agora só ele existe. Com todas as suas motivações e conclusões e todas as suas respostas. Quando vou dormir, ainda procuro uma interrogação embaixo da cama.

FIOS

Examino demoradamente um emaranhado de fios sobre a mesa. Sem nenhuma intenção. Sem nenhuma reflexão profunda. Apenas eles estão ali parados sob o meu olhar, nessa inclinação de cabeça que eu poderia chamar de tristeza ou desolação ou simplesmente sensação do vazio. E é apenas uma inclinação de cabeça que faz meu olhar repousar nesses fios. Os fios me parecem então, de súbito, tristemente embolados. Como que presos uns aos outros. Sem saída. E isso ainda não quer dizer nada. Eu não quero. Apenas me parecem fios presos e desajeitadamente caídos sobre a mesa, desligados, sem utilidade, embolados, esquecidos. Pobres fios! Me compadeço de sua inutilidade, de sua falta de jeito, de sua falta de graça. Fios desmoronados da noite no centro dos meus olhos. Sem curtos-circuitos, sem nenhuma carga elétrica, nenhum impulso, pulsão de vida. Fios como que mortos, seus corpos retorcidos e insepultos, agredindo o meu olhar distraído. Posso desembolar esses fios, e seguir desembolando os outros fios da mesa, e todos os fios da casa, e todos os fios da rua, e todos os fios do mundo, mecanicamente e desesperadamente, como para me salvar da morte, ou como quem segue vivendo, tanto faz. Não vou desembolar fio algum. Sempre haverá algo retorcido e tristemente largado em algum lugar para a gente esquecer um olhar, numa leve inclinação de cabeça que eu poderia chamar de tristeza ou desolação ou sensação do vazio. E é só uma inclinação de cabeça.

22.10.11

I Clowns

o olhar mais triste do mundo
sob um sorriso colorido
um sorriso que é quase lágrima
um sorriso que quase voa do rosto
batendo as asas
um sorriso respirado profundamente
para dentro do corpo
e lá guardado a sete chaves
como a lágrima que não quer cair
e já é o lago de dentro
um lago muito calmo,
desses com patos deslizando...
a tristeza mais profunda
desliza suavemente sobre a superfície
não é chororô nem desespero
ela espera – não se sabe o quê.
ela espera e deseja no fundo do olho
é um olho que deseja – não se sabe o quê.
é apenas um olhar parado – e não sabe.
um palhaço morto boiando no lago
que ainda se bate desajeitadamente
nas tábuas dos barcos, no susto dos patos
fazendo graça
e não sabe.

17.10.11

Ninguém me ensinou a desaprender. Tive que ir por conta própria, me esvaziando. Um bom método para se esvaziar é encher-se de contradições. Os ensinamentos duros começam a amolecer. Vão soltando do fundo. Você esfrega um pouco, vai trocando a água, e quando vê até a gordura mais grudada já não está mais lá, dentro de você. Mas não há fórmulas. Não há receitas. A gente aprende rápido a falar. É imitação. Mas custa muito aprender a desdizer. É um desaprender. Ninguém ensina. Porque a gente aprende das mesmas formas as mesmas disciplinas. Mas o desaprendimento é uma criação. Dois seres que desaprendem sempre vão desaprender de formas diferentes. É preciso inventar. Desinventar. Inventar e desinventar de novo, porque já não é a mesma coisa que se inventa e desinventa. Aprender requer repetição. Mas desaprender são sempre movimentos bruscos, novos movimentos, quedas, desequilíbrios, sustos, muitos sustos e saltos, surpresas, inesperados. Nunca é igual. O primeiro desaprendimento é um maravilhamento, um inesperado livre que surge sem mais nem menos. Parece um acaso, mas não é. É criação. É o deus que a gente é, e projetou fora porque tinha medo dessa onipotência, onipresença, onisciência que pulsa em nós no ato da criação. Porque tinham medo que nós descobríssemos e criássemos tudo diferente do que é agora. Não é confortável desaprender. Não é confortável pra ninguém. Mas é livre. Nada mais livre do que ser eu deus e desaprender e desinventar do meu jeito. Nada mais deus do que a palavra liberdade agindo no meu ato de criação. Tenho conversado com muitos mortos que desaprenderam antes de mim, e também com alguns vivos. Eles não me ensinam nada. Eles me confundem, me desorientam, me atropelam, me descabelam. Não me apontam nenhuma direção. Eles me puxam tapetes, me tiram chãos. Nosso papo tem sido muito produtivo, porque não produz nada, nada de útil ou consumível, nada de nada. Produzir é finito. O que não se produz é a infinitude. É vasto não saber, não ser...é vasto...  desaprender não tem limitação.

8.10.11

É ASSIM

É assim: Como quem preenche os cobertores de pés, para que os cobertores não reparem na falta de outros cobertores para lhe isentarem da função de ser sempre calor. Cobertores também sentem frio. Se sentem pisados e se sentem sozinhos. Tenho pena dos cobertores. Como de copos sem brindes e cigarros sem isqueiros. Tenho pena de tudo o que é incompleto, e portanto de tudo. Tenho dó do existir do mundo.

É assim: Como quem senta numa cadeira, e coloca a bolsa para sentar na outra; e conversa com ela, para que ela não se sinta apenas uma coisa feita para carregar outras; porque uma bolsa carrega o mundo nos ombros e ninguém reconhece, e ninguém lhe agradece por ser bolsa. Outro dia eu dei de beber uma garrafa de uísque à minha bolsa; ela agradeceu embriagada e muitíssimo comovida. Meu celular entrou em coma alcoólico; mas já está recuperado. Tomamos um porre todos, juntos e felizes, eu e os meus pertences!

É assim: Como quem faz companhia à TV ligada durante a noite e por toda a madrugada, porque ela tem medo de dormir sozinha, e num susto nunca mais voltar a ligar. Como quem não desliga as coisas para que elas não tenham medo de não voltar a funcionar. Tudo tem medo da morte. Se eu pudesse desinventava a tecla off.

É assim: Como quem fala poemas para os azulejos do banheiro, para a água e o chuveiro, porque eles têm ouvidos sensíveis, não suportariam me ouvir cantar. Como quem fala poemas para o painel do carro, o volante, o rádio, o porta-luvas e os bancos, os estofados. É preciso distraí-los, entretê-los, para que não percebam que os estou usando para chegar em algum lugar. Eles são muito sensíveis, não suportariam se sentir usados. Todas as coisas são sensíveis. Pessoas, algumas.

É assim: Nada me dói, nada me assusta. Eu não me desgasto, não quebro, não sou descartada. Eu não tenho rótulo, marca, não estou numa prateleira de mercado. Eu não sou usada; nem fico sozinha, esquecida. Eu não tenho frios. Eu não tenho medos. São as coisas que me comovem e me fazer ficar assim.
Quando eu digo “eu me chamo...”, não estou me designando um nome, estou realmente me chamando, porque eu já não estou aqui; é preciso que eu me chame para me dar a conhecer. E por mais que eu me chame, nunca é o suficiente. Há sempre algo que me falta. Eu me dou a conhecer então pela minha ausência, pelo meu chamado de uma presença que chego a tocar e que sempre me escapa. Eu me dou a conhecer não por um nome que me designa, mas por uma palavra que me chama sempre. Eu me chamo porque sou muitas em direções diferentes. É preciso reuni-las num chamado. Como um alarme que soa para inspeção: “Beatriz” – estão todas aqui? Ainda estão todas aqui? Eu me chamo porque há sempre alguma que falta. Alguma de mim que fugiu no meio da madrugada, quando ninguém olhava. Há sempre alguma escondida embaixo da cama com medo, e eu preciso descobrir para acalmá-la. Há sempre alguma que morreu e é preciso enterrá-la. Eu me chamo para me apresentar a mim mesma; não tanto uma presença, mas as minhas faltas.



Livremente inspirado em “Diante da palavra”, de Valère Novarina: "A palavra diz à coisa que ela está faltando e a chama - e, ao chamá-la, ela mantém reunidos num mesmo sopro seu ser e seu desaparecimento".