30.10.10

tela em branco

como uma tela em branco
desejo de palavras e tintas
de sonoridades e cores
movimentos e riscos
mas eu ando muito tela em branco
mesmo
na canto do ateliê
no caderno do poeta
nas partituras sem notas
um foi prestar concurso público
o músico foi louvar o senhor
e tem ainda o pintor
que se enjoou das cores
e furou os olhos
como prova de amor à tela branca
eu ando muito tela branca
sem tinta, sem nota, sem verso
sem verba, sem deus
e ninguém para furar os olhos por mim

23.10.10

de quando lamentávamos o disco arranhado

hendrix na vitrola
você na cabeça
e esse meu maldito gosto por coisas antigas:
hendrix, vitrola, você.
vou quebrar o disco e destruir a vitrola
e o que eu faço com você?
o que eu faço com você?!
vou deixar tocar mais uma faixa
a vitrola não tem culpa
hendrix não tem nada com isso
vou deixar tocar todo o disco - lado A e lado B!
e o que eu faço com você? o que eu faço com você?!
e esse disco arranhado saltando no peito
e esse meu maldito gosto por coisas antigas...

21.10.10

como um blues rasgando a alma

como o sujeito que andava sozinho rente à mureta da ponte rio-niterói
sem se preocupar com os carros que zuniam na madrugada
num passo calmo entre o abismo da baía de guanabara
e a fúria dos motoristas noturnos em auto-estradas
como aquela menina de 11 anos que se trancava no banheiro pra chorar escondida
e que não entendia, não entendia, não entendia...
e que já tinha passado da fase dos "porquês"
"- por que a gente dói? por que a gente dói tanto?!"
não perguntava.
como o cara que dorme com a cara na mesa
depois de se encharcar de cerveja
e que há muito já perdeu o caminho de casa
"- por que a gente dói tanto?"
não perguntava.
como quem já perdeu a esperança
como quem já perdeu um filho
como quem perdeu o isqueiro e precisa
precisa muito fumar um cigarro
o último cigarro entre os dedos e a falta do isqueiro
e na falta do isqueiro o choro de tudo o que fora perdido
o que estava esquecido...
tudo na falta do isqueiro e aquele inútil cigarro entre os dedos
"- por que a gente dói tanto, meu deus?! por quê?"
como o sujeito na ponte
entre o atropelamento brutal
e o mergulho no abismo
"- por quê?"
não perguntava.
de que adianta saber?
não vai parar de doer. não pára...
como quando eu tinha 11 anos...
como agora, com este inútil cigarro entre os dedos.

16.10.10

fragmentos

- o seu poema tem mais flores ou mais baratas?
- o poema é o poeta atropelando o mundo e o mundo atropelando o poeta.*
...
- existe vida após a noite?
- as almas não conhecem o significado da palavra fim.
...
carros estacionados no mictório masculino
uma árvore de flores rosas brotando do asfalto
só entendo de guitarras rasgando a alma.
...
já disse que eu não entendo nada de rock?
abre parêntesis
pescar uma frase e pesquisar no google
fecha parêntesis
"run, baby, run"?
"home, baby, home"?
"how, baby, how"?
volta a fita
e que não entendo nada de inglês?
...
o meio do caminho sempre me apavora
pra voltar ou seguir é sempre longe
pra onde ir?
fade in
cenário: bar - exterior/noite
um cara se senta na minha mesa sem pedir licença
[tempo, tempo, tempo]
quando se levanta, me pede que guarde o SEU lugar
fade out
onde está o meu lugar?
...
só entendo de guitarras rasgando a alma.
...

*este primeiro fragmento é uma reprodução fiel de um diálogo meu com Marcelo Cucco.

11.10.10

nossas habilidades:

comer uma cebola crua
tocar violão com os dedos dos pés
desviar o rumo
improvisar as cenas da noite
embaraçar cabelos sem usar as mãos

9.10.10

a imagem das coisas

para Chacal

vejo o espanto das coisas
as cores e o desespero das coisas
o grito e o choro abafado das coisas
sei do silêncio revelador de todas as coisas mudas
o silêncio aterrador das coisas mudas
os sussurros dos móveis da sala
as conversas dos postes e dos copos embriagados
essas coisas
a briga dos carros batidos no meio da rua
o vexame dos líquidos derramados
e esse chororô chato de chuvas fracas e chuveiros frios
vejo toda a solidão das coisas altas, andaimes morros helicópteros
a solidão das coisas rasas, assoalhos poças d'água
a solidão das coisas bem fixadas pedra parede
e de todas as coisas móveis rio bondinho estrada
sei da ternura de um vaso sem flor que insiste no centro da mesa
apesar de tudo
a ternura de um papel de parede florido e gasto
a ternura das coisas amareladas e esquecidas
que insistem em existir no fundo de armários e gavetas
que insistem em existir no meio de quartos e de salas
que insistem em existir
em mim

7.10.10

essas noites desabrigadas

meu carro tem sido a minha casa
minha vida em trânsito
meu sono conturbado
os engarrafamentos, as buzinas, o pé no acelerador
o combustível na reserva
o combustível sempre na reserva
esse cansaço!...
todo esse sono mal dormido
o sono dos injustos
toda essa insônia
essa falta de cama
essa falta de colo
essas cortinas sempre abertas
o sol na cara
e toda essa ressaca
tudo isso
esses sinais fechados
essas multas por excesso de velocidade
tudo isso
o pára-brisa embaçado
a chuva entrando por algum buraco destampado
tudo isso me mata, está me matando...
os vidros fechados e essa falta de oxigênio
e toda essa falta
- esses excessos -
essa falta
de casa.

5.10.10

olhar indiscreto

hoje um cego olhou pra mim
tenho certeza que aqueles grandes olhos azuis me miravam
um olhar quase incômodo, desses que só quem não vê olha
indiscreto, direto, penetrante
tive a certeza de que ele me via
e mais do que a mim, um quê da minha alma
não fosse a bengala arrastando no asfalto, tesc tesc tesc tesc
eu jamais lhe saberia cego.
aquele olhar me desconsertou
como se me desvendasse algo que até eu desconhecia
as pessoas não se olham no meio da rua
não se faz isso, não, isso não se faz!
a gente fixa um ponto à nossa frente e vai...
ninguém existe, são vultos inconsistentes
fantasmas vagando, robôs, sombras, vultos... só vultos
a gente percebe os vultos, desvia, fixa o ponto e vai...
ninguém se esbarra e ninguém se vê
é muito bem planejado
tudo muito bem planejado
evitamos qualquer contato
e assim estamos protegidos, estamos a salvo
e de repente aqueles olhos em cima de mim
aqueles grandes olhos azuis saltando o muro
quebrando a corrente
de repente, aqueles olhos me vendo
olhos de um homem cego
me fazendo ver
outros olhos no meio da rua
me fazendo perder o meu ponto fixo
o meu ir...
o equilíbrio dos meus passos firmes
e então, eu tateando no escuro
perdida, sem cão guia, sem direção
alguns segundos, e retomei o ponto fixo
mas alguma coisa aconteceu ali
algo como uma visão
fantasmas criando carne,
dentes, músculos, veias,
coração.

4.10.10

Eleições

Agora teremos Romário e Tiririca no Congresso... E Tiririca ainda o mais votado de São Paulo. Não tem como negar que são legítimos representantes do povo brasileiro. q vergonha! Pelo menos a Mulher Melão não foi eleita pra Assembléia Legislativa do Rio... ufa! Mas tá lá o Bebeto - que adotou "Tetra" como sobrenome. No Brasil se faz carreira política jogando futebol, fazendo piada imbecil ou rebolando a bunda! Basta estar na mídia. e depois o povo reclama... pelo menos 2 caras sérios foram os segundos mais votados pra Federal e Estadual no Rio: Chico Alencar e Marcelo Freixo - me sinto representada. mas tenho uma pena danada deles terem que conviver com tanta gente imbecil e filha da puta! Boa sorte pra eles e pra mais um ou outro que valem a pena. E agora é votar contra o Serra (o que significa votar na Dilma, mas falado assim soa bem melhor...).

3.10.10

medos de criança

relâmpagos, escuro, altura
medo de se perder na multidão
medo de ficar sozinha
muito medo de ficar sozinha
muito medo de ficar perdida
perdida e só, no turbilhão da cidade
nem sempre há relâmpagos, luzes apagadas ou lugares altos
solidão e lugares estranhos, há sempre
o vazio e o desconhecido
sempre
esses meus medos
sempre
me assombrando...
sempre essa criança perdida no mundo
cheia de lágrimas e de susto

paisagem

do alto do Cantagalo
um Rio nublado de fim de tarde
vejo uma cidade triste
um barulho de sirene
um helicóptero cruzando o céu
os letreiros luminosos: César Park, hotel Marina
o Vidigal cheio de luzes
e o Dois Irmãos encoberto por nuvens
definitivamente, uma cidade triste